Processo
003/2022
Relator
Dra. Catarina Castro
Primeiro Adjunto
Dr. Amadeu Carlos
Segundo Adjunto
Dra. Tânia André
Descritores:
Recurso Ordinário, Processo Penal 2ª Espécie, Tribunal da Comarca do Lubango - Abuso Sexual de Menor Dependente, Ameaças,Maus Tratos a menores, incapazes ou familiares
PROC. N.º 0003/2022 –
2.ª Especie
ARGUido: A, m. i. fls. 18.
A C Ó R D Ã O
Em nome do povo,
acordam em conferência os Juízes Desembargadores da Câmara Criminal deste
Tribunal da Relação:
1. RELATÓRIO:
Nos Serviços de
Investigação Criminal do Lubango mediante processo comum do Digno Magistrado do
Ministério Público foi o arguido A,
solteiro, de 43 anos de idade (a data dos factos), nascido aos 05 de Maio de
1978, filho de X e de Y,
natural de Chinguar, Província do Bié e residente no bairro… , Menongue,
Kuando Kubango, m. i. fls. 18, acusado como autor material, sob a forma
consumada e, em concurso de infrações, na pratica do crime continuado de Abuso Sexual de Menor Dependente, p. e
p. pelo art.º194.º n.º2, primeira parte, dois crimes de Sequestro p. e p. pelo art.º174.º n.ºs 1 e 2, dois crimes de Propagação De Doença Contagiosa, p. e
p. pelo art.º287.º n.º 1, dois crime de Maus
Tratos a menores, incapazes ou familiares do tipo p. e p. pelo art.º168.º
n.ºs1 al. a) e 2 e um crime de Ameaças do tipo p. e p. pelo art.º170.º
n.º2 todos do C. P. (fls.65, 66, 66v)
Remetido os autos ao Tribunal da Comarca do Lubango para
julgamento, foi apresentada, no âmbito das questões prévias, a incompetência
territorial dessa jurisdição para conhecer o mérito da causa, uma vez que, a
matéria de facto ocorreu no município de Menongue, Província do Kuando Kubango.
E, sendo assim, seria o Tribunal da Comarca de Menongue territorialmente
competente para conhecer o mérito da causa. (fls. 99)
Ouvida as partes,
constatou-se que o arguido A,
acompanhado do seu Mandatário Judicial, se encontra provisoriamente detido na
Unidade Penitenciaria do Lubango desde o dia 03 de Fevereiro de 2022. (fls.
15v)
E, no entanto, as ofendidas B e C, residem no
município da Chibia, Província da Huila e estão desprovidas de recursos
financeiros para as despesas de deslocação, alimentação e alojamento na cidade
de Menongue, Província do Kuando Kubango, por serem camponesas e de baixa capacidade
económica. (fls. 34, 40, 100, 100v)
Dada palavra ao Digno Magistrado do Ministério Publico
presente no julgamento, este requereu a remessa dos autos à jurisdição
competente para o conhecimento do mérito da causa ou, então, essa requerer o
desaforamento dos autos para, de forma extraordinária ser atribuída a
competência para o julgamento dos autos à jurisdição onde as partes se
encontram a residir, isto é, o Tribunal da comarca do Lubango. Pedido este deferido, tendo os autos sido de
imediato remetidos ao Tribunal da Comarca de Menongue. (fls.101)
Recebido os autos, o Tribunal territorialmente competente,
requereu à Câmara Criminal deste Tribunal da Relação para, nos termos do n.º 3
“in fine”, do art.º 26.º do C.P.P., atribuir a competência, de forma
extraordinária ao Tribunal da comarca do Lubango para o julgamento dos autos,
pelas razões invocadas pelas partes, pois, se o pedido não for atendido, aquele
Tribunal poderá provocar de forma séria a não tramitação normal do processo ao
julgar os presentes autos, comprometendo assim o bom exercício da justiça,
conforme a alínea a) do artigo acima mencionado. (fls. 103, 104)
Nesta instancia, tendo sido dado vista dos autos ao Digno
Magistrado do Ministério, em seu curto parecer, propõe o provimento do pedido.
Admitido o recurso interposto, com efeito suspensivo, foi mandado
seguir os termos subsequentes, por nada obstar ao seu conhecimento.
2. OBJECTO DO RECURSO:
O
âmbito do recurso é aferido e delimitado pelas conclusões formuladas na
respectiva motivação, sem prejuízo da matéria de conhecimento oficioso do
Tribunal Superior. Pois, nos processos penais, vigora o princípio do conhecimento
amplo do recurso, partindo da ideia de que o seu objecto legal é a decisão
recorrida e não a questão por ela julgada, ainda que o recorrido restrinja o
objeto do recurso, devido à finalidade de interesse público que ela visa
alcançar. (art.º 464.º n.º 1 do
CPP e Manuel Simas Santos, Recursos Penais em Angola, pag.77)
Assim, embora o recurso tenha sido interposto
apenas pelo Magistrado Judicial do Tribunal da Comarca do Menongue, nos termos
do art.º 663.º do C. P. P. de 1929, este Tribunal o conhecerá, também, em
relação às demais partes, pois nos cabe reapreciar o processo e a matéria do
recurso na generalidade, isto é, tanto da matéria de facto como da matéria de
direito. (art.º 663º do C.P.P. de 1929, artº
464º n.º 1 do C. P. P., bem como, Ac. Relação do Porto, 06-12-1930, Gaz. Rel.
Lx.ª 44.º-248).
Nestes termos, da leitura atenta dos autos, sem
prejuízo das nulidades ou excepções de conhecimento oficioso, permite-nos
definir como objecto de recurso as seguintes questões a conhecer:
1. Verificação da existência ou não dos requisitos legais para o
desaforamento,
com vista a atribuir a competente para julgamento dos presentes ao Tribunal da
Comarca do Lubango, nos termos do art.º 26º nº 1. al. a) do C. P. P..
*
3. FUNDAMENTAÇÃO:
Aqui chegados, cumpre-nos, primeiramente, apreciar a questão
doutrinal e de conhecimento oficioso quanto a figura do desaforamento.
3. 1. O que é o Desaforamento
dos autos, nos
termos do art.º 26 º do C. P. P..
O desaforamento ou deslocação da competência ocorre quando o
processo é submetido a foro estranho ao delito, isto é, consiste no deslocamento da competência territorial de uma comarca para
outra, para a realização do julgamento de determinado processo.
Como medida excepcional, o desaforamento, somente, é admitido
quando estão presentes as hipóteses legais do art.º 26.º e ss do Código de
Processo Penal, sendo insuficientes para tanto, meras conjecturas ou ilações
sobre o risco à ordem pública ou injustiça.
A realização do julgamento no “locus delicti”
atende ao princípio do juiz natural e constitui interesse tanto da acusação
quanto da defesa. Mas, nas circunstancias do estabelecidas no n.º 1 artigo 26.º do C. P. P., tal “competência pode ser retirada
do tribunal competente e atribuída a outro tribunal, quando ocorrências locais
gravemente perturbadoras do normal andamento do processo e da realização da
justiça, designadamente, as:
a)
Impedirem ou
dificultarem de forma séria o exercício da justiça pelo tribunal competente;
b)
Comprometerem gravemente
a liberdade de determinação dos sujeitos e participantes processuais…”
Tem legitimidade para requerer o desaforamento: a requerimento do
Ministério Público, do assistente da acusação, do querelante ou do acusado ou
mediante representação do juízo competente. (art.º 26.º n.º 3 do C.P.P)
A comarca para a qual o processo será
desaforado:
deve ser aquela da mesma espécie e hierarquia da comarca afectada pelos motivos
que ensejaram a alteração da competência, o mais próximo possível deste e onde
não estejam presentes, os incidentes de semelhante natureza, como deixa claro a
parte final do n.º 2 do art.º 26.º do C.P.P..
A
decisão que decreta o desaforamento tem caráter jurisdicional e não administrativo, pois necessita ser
proferida por uma das Secções da Câmara Criminais do Tribunal da Relação e não
pela Presidência do Tribunal ou outro órgão diretivo da corte, que estaria
agindo em sua competência administrativa e não jurisdicional. (n.º 3 in fine do
art.º 26 do C.P.P.)
Segundo a doutrina mais notória o desaforamento é uma medida
extraordinária e excepcional, pois ela viola a competência em razão do lugar,
isto é, ela atribui competência ao tribunal de uma comarca para julgar um
processo cujos factos ocorreram noutra comarca. (Renato. Manual de processo penal.
Ed. Juspodivm.7ª
edição. 2019, p. 1415-1420.)
Cuida-se de decisão
jurisdicional que altera a competência territorial inicialmente fixada pelos
critérios constantes do art.º 14.º n.º 1 do C.P.P., com aplicação estrita à
sessão de julgamento propriamente dita. (art.º 26.º n.º 1 do C.P.P.)
Embora a jurisprudência do Tribunal Supremo
nada versa sobre esta figura, por ser nova, nos termos legais, o desaforamento não pode ser
concedido com base em alegações vazias, que não forneçam elementos concretos
para concluir-se pela suspeição.
E como se apresentam, o desaforamento dos
presentes autos foi requerido por quem tem legitimidade para o fazer e dirigido
ao tribunal competente para o seu conhecimento.
3. 2. Verificação da existência ou não dos
requisitos legais para o desaforamento.
Aqui chegados há necessidade de se transcrever parte das
motivações aduzidas nas conclusões do pedido de recurso, que se segue:
Verifica-se no caso sub judice, a indisponibilidade financeira
das ofendidas para se deslocarem, se hospedarem e se alimentarem no Município
de Menongue, Província do Kuando Kubango, a fim de acompanharem o julgamento
dos presentes autos, por residirem actualmente na comuna do Jau, município da
Chibia, província da Huila. (fls. 40)
Outrossim, constata ainda que o arguido A, também se encontra, preventivamente detido no estabelecimento
prisional do Lubango. (fls.86)
Será que as razões acimas invocadas são suscetíveis de
dificultarem de forma séria o exercício da justiça pelo Tribunal competente?
Ora vejamos.
A Constituição da República de Angola
refere-se ao princípio do contraditório, a propósito das garantias do processo
penal no exercício da função jurisdicional (n.º 2 “in fine” do art.º 174.º),
prescrevendo que aos Tribunais compete assegurar a defesa dos direitos e
interesses legalmente protegido, bem como os princípios do acusatório e do
contraditório. Denotando assim que o processo penal tem estrutura acusatória,
estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar
subordinados ao princípio do contraditório.
Escrevem, em análise a este preceito V.
Moreira e G. Canotilho (CRP Anotada, págs. 202 e 206) que não é inteiramente líquido o âmbito
normativo-constitucional do princípio do contraditório. "Relativamente aos
destinatários ele significa:
(a)
dever e direito de o juiz ouvir as razões das partes (da
acusação e da defesa) em relação a assuntos sobre os quais tenha de proferir
uma decisão;
(b)
direito de audiência de todos os sujeitos processuais que
possam vir a ser afectados pela decisão, de forma a garantir-lhes uma
influência efectiva no desenvolvimento do processo;
(c)
em particular, direito do arguido de intervir no processo e
de se pronunciar e contraditar todos os testemunhos, depoimentos ou outros
elementos de prova ou argumentos jurídicos trazidos ao processo, o que impõe
designadamente que ela seja o último a intervir no processo (cfr. AcTC n 54/87
e 154/87).
Quanto à sua extensão processual, o
princípio abrange todos os actos susceptíveis de afectar a sua posição e, em
especial a audiência de discussão e julgamento e os actos instrutórios que a
lei determinar, devendo estes ser seleccionados sobretudo de acordo com o
princípio da máxima garantia de defesa do arguido" (sublinhados agora).
Em geral o princípio do contraditório consiste na regra segundo a
qual, sendo formulado um pedido ou oposto um argumento a certa pessoa, deve-se
dar a esta a oportunidade de se pronunciar sobre o pedido ou o argumento, não
se decidindo antes de dar tal oportunidade (Castro Mendes, Dir. Processual
Civil, 1980, 1.°-223); o processo reveste a forma de um debate ou discussão
entre as partes (audiatur ei altera pars), muito embora se admita que as
deficiências e transvios ou abusos da actividade dos pleiteantes sejam supridos
ou corrigidos pela iniciativa e autoridade do juiz. Cada uma das partes é
chamada a deduzir as suas razões (de facto e de direito), a oferecer as suas
provas; a controlar as provas do adversário e a discretear sobre o valor e resultado
de umas e outras (A. Anselmo de
Castro, Dir. Processual Civil Declaratório, ed., 1981, 1.°-44).
E, no domínio do processo penal, significa que o juiz não deve
levar a cabo a sua actividade solitariamente, mas deve para tanto ouvir quer a acusação
quer a defesa. (Figueiredo Dias, Dir. Proc. Penal, I.°-149)
A Convenção Europeia dos Direitos do Homem também estabelece que há
que atender no direito interno, o princípio do contraditório entre as
exigências de um processo penal justo e equitativo, como tem sido esclarecido
por diversos arestos do respectivo Tribunal. (art.º6.º)
«(2) O tribunal competente para a decisão (sobre a prisão) tem de
oferecer as garantias de um processo equitativo, fazendo observar os princípios
do contraditório e da igualdade de armas. (...)
No âmbito de um processo penal, o processo equitativo impõe e
exige que se assegurem os princípios do contraditório e da igualdade de armas
entre acusação e defesa.
Um julgamento contraditório implica, em processo penal, que à
acusação e defesa seja dado conhecimento e oportunidade de resposta ao
promovido pela parte contrária e à prova por ela produzida; decorre do artigo
6º § 1 para as autoridades responsáveis pela acusação o dever de fornecer à
defesa toda a prova de que dispõem, quer deponha a favor ou contra o arguido.»
(AcTEDH de 16/02/2000, Caso Fitt c. Reino Unido)
O Código de Processo Penal refere-se expressamente ao princípio do
contraditório no n.º 1 do art.º 365.º. E
a jurisprudência deste Tribunal vem afirmando que «o contraditório em processo
penal é um princípio constitucional e legal incontornável» (Ac. do T. S de 30/10/2001, proc. n.º 2630/01-3)
No contexto do caso sub judice,
constata-se que tanto o arguido como as ofendidas se encontram na província da
Huila. E, tendo as ofendidas dificuldade de se fazerem presentes no julgamento
na província do Kuando Kubango, em obediência ao princípio do contraditório e
do julgamento justo, há necessidade de se atender o pedido formulado pelo
Tribunal da Comarca do Menogue, atribuindo ao Tribunal da Comarca do Lubango, a
competência para o julgamento dos presentes autos.
Ora, como se viu, um julgamento
justo ocorre quando as partes envolvidas nos autos estejam presentes e, tenham
as mesmas oportunidades de defesa. Dando oportunidade, tanto ao arguido quanto
as ofendidas de se pronunciarem sobre elementos de provas que possuem para
defesa dos seus interesses, ditos por violados.
Assim, em obediência ao princípio do contraditório, julgamos dever
ser atendido o pedido, devendo os presentes autos serem remetidos ao Tribunal
da Comarca do Lubango, para o respectivo Julgamento, para não se impedir nem
prejudicar de forma seria o exercício da justiça.
4. DA DECISÃO
Nestes termos e fundamentos acima expostos, acordam os Juízes Desembargadores
desta Câmara Criminal em julgar procedente o recurso trazido pelo Magistrado
Judicial do T. C. Menongue e, em consequência, atribuir ao Tribunal da Comarca
do Lubango a competência para o julgamento dos presentes autos.
Remetam-se os presentes autos ao Tribunal da Comarca do Lubango.
Sem custas.
Notifique.
Lubango, aos 24.01.2023
Relator: Catarina Castro
1. Adjunto: Amadeu Carlos
2.
Adjunto: Tânia André