Processo
Proc. nº 142/2022
Relator
Dr. Bento Camenhe
Primeiro Adjunto
Dr. Adão Chiovo
Segundo Adjunto
Dr. Armando do Amaral Gourgel
Descritores:
Recurso Ordinário, Processo Penal 2ª Espécie, Tribunal da Comarca do Lubango - Abuso de Confiança, Associação Criminosa .
Processo n.º 142/2022
Arguidos: AAAAA.
- BBBBB.
- CCCCC.
ACORDAM EM
CONFERÊNCIA, NA CÂMARA CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO LUBANGO, EM NOME DO
POVO:
I.
RELATÓRIO
Na 1ª Secção Criminal
do Tribunal da Comarca do Lubango, Província da Huíla, foram pronunciados (fls.
378 a 378vº), mediante acusação da Digna Magistrada do Ministério Público (fls.
357 a 359vº), os arguidos:
1. AAAAA, solteiro,
de 59 anos de idade, nascido a 06 de Setembro de 1963, reformado, filho de XXXXX e de yyyyyy, natural da Província
do Huambo, residente na Província de Luanda, no bairro…., (fls. 27, 46, 75,171,
172, 174, e 260);
2. BBBBB, solteira, de 38 anos de idade, nascida a 04 de Abril de
1985, desempregada, filha de XXXX e
de YYYYY, natural do Município de
Caconda, Província da Huíla, residente nesta Cidade do Lubango, no bairro …. (fls. 21 e 259); e
3. CCCCC, solteiro,
de 31 anos de idade, nascido a 12 de Outubro de 1991, desempregado, filho de XXXX e de yyyyyy, natural do Município da Jamba e residente nesta Cidade do
Lubango, no bairro….., (fls. 20 e
258); como autores material sob a forma consumada e em concurso real de
infracções na prática dos crimes de Abuso de confiança, p. e p. pelo art.º
453º, conjugado com o nº 5 do art.º 421º, todos do C. Penal de 1886 e Associação
Criminosa p. e p. pelo nº 1, do art.º 8º da Lei nº 3/14, de 10 de
Fevereiro.
Realizado o julgamento
e respondidos os quesitos que o integram, foi, por acórdão de 10 de Março de
2022, julgada improcedente e não provada a douta acusação, quanto aos arguidos BBBBB e CCCCC, tendo sido
absolvidos pelo Tribunal recorrido.
Relativamente ao coarguido
AAAAA, com os demais sinais dos
autos, foi julgada parcialmente
procedente e provada, por conseguinte absolvido no crime de Associação
Criminosa e condenado na pena de 2 (dois) anos de prisão, em kz. 70.000,00
(setenta mil kwanzas) de taxa de justiça, tendo relegada para liquidação em
execução de sentença o pedido de indemnização civil, pelo crime de Abuso de
Confiança.
O Tribunal recorrido
suspendeu a execução da pena de prisão por um período de 2 (dois) anos, nos
termos do art.º 50º do Código Penal.
***
Desta decisão interpôs
recurso a Digna Magistrada do Ministério Público por não conformação (fls. 528
a 531), nos termos dos art.ºs 460º, 463º, nº1, al. a), 469º, nº1, 470º, nº1,
al. a), e 471º, nº1, al. a), todos do Código de Processo Penal.
Admitido este (fls.532
e 532 vº), nas alegações apresentadas (fls. 528 a 531), concluiu resumidamente
como se transcreve:
- Alterar na parte que relegou a liquidação em execução
de sentença para o Tribunal Cível, condenando o arguido AAAAA, ao pagamento de uma indeminização de AOA 19.529.539,31
(dezanove milhões, quinhentos e vinte e nove mil, quinhentos e trinta e nove
Kwanzas e trinta e um cêntimos) á ofendida, empresa denominada OOOOOOOO.
***
Notificados os Ilustres
Causídicos de defesa (fls.536) e assistente (fls. 535), estes contra-alegaram
em (fls.544 a 548) e (fls. 558 a 568), respectivamente, e como delas se
transcreve resumidamente:
- Que se declare improcedente o recurso interposto, pela
existência de incongruências dos pedidos formulados pelo Digno Agente do Ministério
Público;
- Seja confirmado o acórdão em crise, por se afigurar
mais justo para o recorrido;
- Requer
ainda que se julgue improcedente as alegações do requerente juntas aos autos.
***
O ilustre Advogado de acusação, apresentou as
suas contra-alegações, resumidas como se segue:
- Alterar o Acórdão em crise na parte que relegou a
liquidação em execução da sentença para o Tribunal Cível, condenando AAAAA, no pagamento da indemnização
fixada no valor apurado pela perícia da Delegação Provincial das Finanças, ou
seja, Kz. 19.529.539,31 (Dezanove Milhões, Quinhentos e Vinte e Nove Mil,
Quinhentos e Trinta e Nove Kwanzas e Trinta e um cêntimos);
- De forma subsidiaria,
deverá o Acórdão ser alterado, condenando os coarguidos como cúmplices na
prática do crime pelo qual aquele foi condenado.
Nesta instância, ordenado
o conhecimento do objecto de recurso e continuados os autos com vista ao Digno
Magistrado do Ministério Público, este expendeu seu douto parecer nos termos a
seguir transcritos de forma resumida (fls. 588 a 589 vº):
Propõe que se dê provimento parcial ao recurso
interposto, no sentido de se arbitrar a quantia
requerida, a título de indemnização provisória, que será levada em conta no
valor a arbitrar em liquidação em execução de sentença.
***
QUESTÕES PRÉVIAS
- Compulsados os autos verifica-se inúmeras
irregularidades quanto a numeração das peças processuais de fls. 309 a 369 e
deste para 454 a 512, peças com numeração repetida.
- Verifica-se igualmente a falta de colocação do termo de
juntada do mandado de notificação e respectivas certidões de fls. 380 a 384;
bem como os versos das respectivas folhas não trancadas.
- A fls. 399 consta o despacho da Juíza a designar a data
de audiência e julgamento, mas que os respectivos assessores não foram
notificados do acto, bem como da respectiva acta de fls. 407, constando apenas
assinatura de um dos assessores.
- Não foram juntados aos autos certificados de Boletins
de Registo Criminal dos arguidos.
II.
OBJECTO DO RECURSO
Sendo o âmbito e o
objecto do recurso delimitados “para além das meras razões de direito e das
questões de conjunto oficioso” pelas conclusões formuladas pela recorrente –
arts. 660.º, nº 2; 664, nº 3, 690º, nº 1, todos do Código de Processo Civil),
conjugado com os artigos 464º, 465º, ambos do Código de Processo Penal.
Considerando o contexto
normativo e o teor das conclusões apresentadas pelo recorrente, as questões que
importa decidir são:
a) Alterar a parte que
relega a liquidação em execução de sentença para o Tribunal cível;
b) Condenar o arguido AAAAA, no pagamento de uma indemnização
de kz. 19.529.539,31 (dezanove milhões, quinhentos e vinte e nove mil,
quinhentos e trinta e nove kwanzas e trinta e um cêntimos).
Mostram-se colhidos os vistos legais.
Importa, pois, apreciar e decidir.
III.
FUNDAMENTAÇÃO
a) Questões de
conhecimento oficioso.
- Das inúmeras irregularidades quanto a numeração das peças
processuais de fls. 309 a 369 e deste para 454 a 512, peças com numeração
repetida, deixando equívocos quanto a correcta numeração do processo, sem, no entanto, o escrivão justificar as
causas que o levaram a proceder de tal forma, muito menos o juiz a que ficaram
adstrito os autos, procurou informar-se do que se terá passado. O que de certo
modo chamamos atenção, pelo facto de a prossecução dos autos reger-se no
cumprimento escrupuloso do direito adjectivo.
- Da falta de colocação
do termo de juntada do mandado de notificação e respectivas certidões de fls.
380 a 384; bem como os versos das respectivas folhas não trancadas.
Dispõe o nº1 do artigo
185º do C.P.P. que os documentos são juntos oficiosamente ou a requerimento. Já
o nº 2 do artigo supra, que os documentos devem ser apresentados até ao
encerramento das fases de instrução, salvo se o apresentante provar que só teve
conhecimento deles em momentos posteriores ou que não lhe foi possível, por
qualquer outra razão, faze-lo antes, caso em que a junção pode ser feita ate ao
encerramento da audiência e discussão de julgamento.
Ora, atento ao que
acima a norma estabelece, processualmente sempre que se juntar aos autos alguma
peça, deve ser mediante o respectivo termo de juntada, para clarificar a quem
consultar ou examinar o processo de que aquele documento justifica a prática ou
a junção de uma peça processual produzida fora dos autos, conforme o caso,
oficiosamente ou a requerimento. Tendo o escrivão do processo ter junto aos
autos mandado de notificação e as respectivas certidões sem o respectivo termo,
viola o estatuído na lei processual penal, o que chamamos atenção a não voltar
a acontecer nos próximos casos que aquele Tribunal vier a decidir.
- A fls. 399 consta o
despacho da Juiz a designar a data de audiência e julgamento, mas que os
respectivos assessores não foram notificados do acto, bem como da respectiva
acta de fls. 407, constando apenas assinatura de um dos assessores.
Reza o nº 9 do artigo
362º do C. P.P. de que “no despacho deve também o juiz da causa, mandar dar
vista do processo a cada um dos restantes juízes, caso o processo seja
colectivo, por um período variável de 3 a 8 dias, conforme a complexidade do
processo”.
Ora, na sequência da
Mma. Juiz a quo, ter designado data de julgamento, o escrivão do processo
deveria notificar as partes com interesse no processo, bem como tinha de dar
vista aos juízes assessores, para o devido conhecimento e preparar-se para a
referida audiência.
Este desiderato encontra a sua conjugação nos termos do
artigo 228º nº2, ss do C.P.C.
Quanto ao facto de um dos juízes assessores que integrou o
Tribunal colectivo, não ter assinado a acta de fls. 407, viola claramente o fim
útil do artigo 410º nº 4 do C.P.P.
- Da não junção aos autos de
Certificado e Boletins de Registo Criminal do arguido.
Consta
da al. d) do nº 4 do artigo 417º do Código do Processo Penal, como um dos
requisitos da sentença, a ordem de remessa dos boletins ao Registo Criminal.
O
facto de o Tribunal “a quo” ter condenado o arguido a uma pena, em obediência
ao artigo acima referido tinha a obrigação de ordenar a remessa dos boletins ao
Registo Criminal o que não foi feito, violando deste modo o direito adjectivo,
o que deve ser evitado porque constitui uma irregularidade processual.
***
Com
relevo para a apreciação do recurso interposto, importa transcrever o acórdão recorrido de forma resumida,
quanto aos factos, a subsunção destes ao direito
e da pena aplicada.
b) Da matéria de facto
O arguido AAAAA,
trabalhou na empresa OOOOOOOO desde
Novembro de 2009, até no final do mês de Janeiro de 2017.
No ano de 2012, foi transferido para o posto de
abastecimento de combustível da Tchimúcua, nesta cidade do Lubango, exercendo a
função de Gerente, até a cessação do contrato de trabalho.
A arguida BBBBB,
trabalhou na mesma empresa, desempenhando as funções de Auxiliar de
contabilidade e assistente da Gerência. E o co-arguido
CCCCC, laborou na mesma, onde
exerceu também a função de auxiliar de contabilidade.
No decurso do contrato de trabalho os proprietários da
empresa OOOOOOOO, detectaram algumas
irregularidades de tesouraria no posto de abastecimento de combustível da Tchimúcua.
No ano de 2016, o arguido AAAAA, celebrou um contrato verbal via telefónica com a declarante DDDDD, representante da empresa GGGGGGGGG, segundo o qual, as viaturas
desta passassem a ser abastecidas no referido posto da Tchimúcua e o pagamento
do valor do produto seria feito por meio de transferência bancária para a conta
da empresa OOOOOOO domiciliada no BAI.
Acontece, porém, que no mês de Julho de 2016 aquele, contrariando
o acordo verbal celebrado com a empresa GGGGGGGGG,
orientou o coarguido CCCCC, para
contactar a declarante DDDDD,
informando-a para proceder os pagamentos da compra de combustível na conta
bancária domiciliada no Banco BAI em nome da empresa KKKKKK de sua pertença.
No período compreendido entre Julho de 2016 a Janeiro de
2017, a empresa ARIANG TRADING, fez pagamentos da compra de combustível de
forma faseada nas coordenadas bancárias fornecidas pelo arguido Américo, no valor de kz. 25.350.000,00
(vinte cinco milhões trezentos e cinquenta mil kwanzas), vide extracto bancário
de fls. 303 a 350.
Face ao desfalque registado na tesouraria, em Janeiro de
2017, a empresa fez deslocar da província de Luanda à cidade do Lubango, uma
delegação,
constituída pelos declarantes, Domingos Viegas, Alberto Pereira, Arminda
Hossi e o cidadão identificado por Agnelo Pereira, a fim de pedirem
esclarecimentos ao arguido AAAAA,
relativamente a falta de valores na tesouraria.
Fruto da auditoria realizada, do período compreendido
entre os anos 2012 a 2017, comprovou-se que parte dos valores arrecadados pelo posto
de abastecimento da Tchimúcua, não eram depositados na conta bancária da
empresa OOOOOOOO (fls. 89, 161 a 168
e apenso I).
Da auditoria interna feita pela ATA, registou-se um desfalque
de kz. 33.704.265,00 (trinta e três milhões, setecentos e quatro mil duzentos e
sessenta e cinco kwanzas).
Apenas em Janeiro de 2017, quando AAAAA, preparava-se para rescindir o contrato de trabalho com a
empresa OISS, depois de causar prejuízos a mesma, orientou a empresa GGGGGG, por intermédio dos coarguidos CCCC
e BBBB, para esta voltar a fazer os pagamentos do combustível na conta da OOOOOOOO.
Foi assim, que em cumprimento da referida orientação
dada, a 19 de Janeiro de 2017, a coarguida BBBBB,
enviou email para o Gerente da empresa ARIANG TRADING, informando-o que as
transferências da compra de combustível passarão a ser feitas na conta bancária
da empresa OISS com natureza 10. 2.
AAAAA, no período compreendido entre Junho de 2016 a Dezembro do
mesmo ano, efectuou depósitos no valor de kz. 21.750.000,00 (vinte um milhões
setecentos e cinquenta mil kwanzas) na conta bancária número 7209512 10 2, pertencente a empresa OOOOOOOO (fls. 273 a 303).
Do inquérito realizado pela Delegação das
Finanças da Huíla, apurou que no posto em causa, houve um desvio de kz.
19.529.539,31 (dezanove milhões, quinhentos e vinte e nove mil e quinhentos e
trinta e nove kwanzas e trinta e um cêntimos).
Os coarguidos CCCCC
e BBBBB, alegaram que procederam de tal maneira sob orientação do arguido Américo, mas não se beneficiaram das
quantias depositadas na conta bancária da empresa deste.
Para a sua
defesa AAAAA, alega que orientou a
empresa GGGGGG, a proceder o
pagamento do combustível na conta da sua empresa ANBT Comércio Geral Serv, Lda,
porque alguns clientes depositavam os valores em outras subcontas de natureza
diferente pertencentes a empresa lesada e causava constrangimentos na hora de pagamentos
das despesas do posto de combustível.
c) Factos não provados
Os arguidos CCCCC
e BBBBB, beneficiaram-se do dinheiro depositado na conta bancária
domiciliada no banco BAI, pertencente a empresa KKKKK, propriedade do arguido AAAAA,
pela Empresa GGGGGGGGG.
Ora, o Tribunal a quo sustenta sua posição, baseando-se
nas respostas deste, quando afirmara de como “aqueles não se beneficiaram em
momento algum do dinheiro que a empresa ARIANG TRADING, transferiu para conta
bancária da sua empresa”.
Os arguidos pertencem a um grupo destinado a cometer
crimes.
d) Do direito
Ora,
AAAAA, BBBBB e CCCCC, com os demais sinais de identificação nos autos, foram
acusados e pronunciados pelos crimes de abuso de confiança, p. e p pelo p. e p.
pelo art.º 453º, conjugado com o nº 5 do art.º 421º, todos do C. Penal de 1886
e Associação Criminosa p. e p. pelo nº 1, do art.º 8º da Lei nº 3/14,
de 10 de Fevereiro.
e) Decisão
Após o julgamento, o Tribunal
recorrido absolveu os arguidos BBBBB e CCCCC, por
insuficiência de provas nos termos do artigo 67º da CRA, nos crimes de abuso de
confiança e associação criminosa.
Quanto ao arguido AAAAA, foi também absolvido por
insuficiência de prova no crime de associação criminosa. Condenando-o na pena 2
(dois) anos de prisão pelo crime de abuso de confiança, p. e p. nos termos dos
artigos 404º nº1 e 392º al. c) do C. Penal vigente, em kz. 70.000,00 (setenta
mil kwanzas) de taxa de justiça, tendo aquele Tribunal relegada para liquidação
em execução de sentença o pedido de indemnização civil.
3.1. APRECIAÇÃO
a) Dos factos
Os arguidos AAAAA, BBBBB e CCCCC, foram trabalhadores da
empresa OOOOOOOO (Oil Internacional
Supply Services), exercendo as funções de Gerente, assistente da Gerência e
auxiliar de contabilidade, respectivamente, no período compreendido entre
Novembro de 2009 a Janeiro de 2017.
No ano de 2016, AAAAA,
na qualidade de gerente, celebrou um contrato verbal via telefónica com a
declarante DDDDD, representante da
empresa GGGGGGGGG, segundo o qual,
as viaturas daquela passarem a ser abastecidas no posto da Tchimúcua e o
pagamento do valor do produto a ser transferido para a conta da empresa OISS
domiciliada no BAI.
Porém, no mês de Julho de 2016, aquele orientou o coarguido
CCCCC, para contactar a declarante DDDDD, informando-a da nova coordenada
bancaria. Assim, a ARIANG transferiu
o valor em kz. 25.350.000,00 (vinte cinco milhões trezentos e cinquenta mil
kwanzas), na conta da empresa ANBT.
No decurso do contrato de trabalho os proprietários da
empresa OOOOOOOO, detectaram algumas
irregularidades de tesouraria no referido posto.
Em véspera da
rescisão do contrato de trabalho com a empresa lesada, isto é, Janeiro de 2017,
aquele orientou a empresa ARIANG TRADING, por intermédio dos arguidos CCCC e BBBB, para esta voltar a fazer
os pagamentos do combustível na conta da OOOOOOOO.
Ora, AAAAA, no
período compreendido entre Junho de 2016 a Dezembro do mesmo ano, efectuou
depósitos no valor de kz. 21.750.000,00 (vinte um milhões setecentos e
cinquenta mil kwanzas) na conta bancária número 7209512 10 2, pertencente a empresa OOOOOOOO (fls. 273 a 303).
Face
as irregularidades, a empresa lesada fez deslocar da província de Luanda à
cidade do Lubango, uma delegação,
a fim
de constatarem in loco, relativamente a falta de valores na tesouraria.
Da auditoria
interna realizada pela ATA (entidade independente contratada pela empresa), certificou-se
que os valores arrecadados, nem todos eram depositados na conta bancária da
empresa OOOOOOOO. Tendo registado um
desfalque de kz. 33.704.265,00 (trinta e três milhões, setecentos e quatro mil
duzentos e sessenta e cinco kwanzas), pois, deste valor inclui todas as
receitas do posto de combustível (recauchutagem, restaurante e das vendas dos
combustíveis).
Embora o arguido tenha feito depósitos na conta da
empresa lesada, do inquérito realizado pela Delegação das Finanças da Huíla em
2018, solicitado pelo SIC, este incidiu sobre as vendas dos combustíveis
(gasóleo e gasolina), tendo apurado que havia ainda desfalque no valor de kz.
19.529.539,31 (dezanove milhões, quinhentos e vinte e nove mil e quinhentos e
trinta e nove kwanzas e trinta e um cêntimos). Montante este que não foi
ressarcido até a data presente.
Portanto, ficou provado que os coarguidos CCCCC e BBBBB, não tiveram nenhum
benefício nos depósitos feitos na conta da empresa de AAAAA, pois, eles procederam de tal maneira por orientação deste.
Para justificar sua atitude reprovável e com
o propósito de enriquecer-se com dinheiro alheio, AAAAA, alega que orientou a empresa ARIANG, a proceder o pagamento do combustível
na conta da sua empresa ANBT Comércio Geral Serv, Lda, porque alguns clientes
depositavam os valores em outras subcontas de natureza diferente, pertencentes
a empresa lesada e causava constrangimentos na hora de pagamentos das despesas
do posto de combustível.
Portanto, com
base na matéria de facto provada pelo Tribunal a quo e reproduzida nesta instância
AAAAA, nas vestes de gerente,
reiteradas vezes beneficiou das transferências monetárias da empresa GGGGGGGGG, para a conta da empresa KKKKK, de sua pertença, sem o
consentimento dos sócios da empresa lesada, como se de dono se tratasse,
provocando um desfalque de somas de dinheiro, em clara violação das normas
penais vigentes, mesmo sabendo que tal atitude prejudicaria a OOOOOOOO.
b) Aplicação da lei no
tempo.
Analisados os factos em reapreciação, verifica-se que os
mesmos ocorreram no período de 2016 a 2017, neste
Município do Lubango. Nesta altura vigorava o Código Penal de 1886,
importando-nos referir a aplicação da lei penal no tempo.
No decurso da aplicação da lei penal aos factos
concretos, foi aprovada a Lei nº 38/20, de 11 de Novembro, Lei que aprova o
Código Penal Angolano. Esta norma faz cessar a vigência do Código Penal de
1886.
Dispõe a nova lei no nº 2, do artigo 2º, 1ª parte,
“sempre que as disposições penais vigentes no momento da prática do facto forem
diferentes das estabelecidas em leis posteriores, aplica-se o regime que
concretamente se mostrar mais favorável ao agente”.
No caso concreto, AAAAA, foi condenado nos termos do artigo 404º
do Código Penal vigente, na pena de 2 anos de prisão. Nos termos desta lei, a
moldura penal do crime de Abuso de Confiança é de 2 a 8 anos de prisão, mostrando-se mais favorável ao arguido em relação ao Código Penal de
1886, que estabelecia uma moldura penal de 8 a 12 anos de prisão maior, caso o
valor da coisa exceda kz. 600.000.00, nos termos do artigo 453º conjugado com o
artigo 421º nº 5 deste Código.
c) Do direito
Sendo incontroversa a factualidade fixada como
provada pelo Tribunal recorrido, não se nos afigura haver dúvidas quanto à
responsabilidade do arguido quer criminal (enquanto autor material) quer cível
(conexa àquela).
Senão vejamos:
Os factos em apreço reportam-se ao período temporal
de 2012 a 2017.
O crime de abuso de confiança imputado
ao arguido AAAAA, é previsto e punivel nos termos do art.º 404º, conjugado
com o art.º 392º al. c) ambos do C.Penal vigente.
Segundo o
artigo 404.º - Comete o crime de abuso de confiança:
- quem se
apropriar de coisa móvel que lhe tenha sido entregue por título não translativo
de propriedade, que produza obrigação de a restituir ou de a apresentar ou de
aplicar a certo fim, é punido com as penas do furto no art.º 392º,
tendo em atenção o valor da coisa apropriada.
Ora, o crime de abuso de confiança integra-se no
grupo dos crimes intitulados pelo Código Penal, na secção III como “Crimes de
apropriação indevida” e insere-se no Capítulo II dos crimes contra a
propriedade.
Seguindo de perto os ensinamentos doutrinais
contidos em “Comentário Conimbricense do Código Penal” de Figueiredo Dias,
Coimbra Editora 1999, Tomo II, págs. 94 e 102:
- Este crime visa proteger (com esta incriminação) o
bem jurídico da propriedade = em sentido penal que inclui o poder de facto
sobre uma coisa com a inerente fruição das respectivas utilidades.
- É um crime de dano e de resultado, pois, pressupõe
sempre para a sua consumação pela acção do agente, que haja uma lesão/um ataque
àquele bem jurídico protegido consumado através da apropriação;
- E é um crime específico próprio, pois,
pressupõe sempre a existência de uma relação entre o agente e o proprietário da
coisa.
Assim sendo e com interesse para o caso em apreço,
este tipo de crime tem como elementos
constitutivos:
- O elemento objectivo é a apropriação de coisa
móvel que tenha sido entregue ao agente por título não translativo da propriedade e,
por isso mesmo, tem de ser uma coisa alheia (não pertencente ao agente).
Essa entrega da coisa ao agente tem
sempre de ser lícita. E essa entrega pode ser feita através de qualquer acto ou
negócio jurídico (tal como o mandante, o depósito, a locação, a administração)
pelo qual o agente foi investido, materialmente ou apenas
formalmente, no poder de disposição da coisa (mas não em nome próprio já que se
tratava de coisa alheia) e tendo o agente ficado obrigado à devolução
da coisa (ao transmitente ou a terceiro).
In casu, após o agente ter recebido a
responsabilidade de gerir o negócio a conta de outrem (formalmente e de
forma lícita), apropriar-se dele como se fosse seu (alterando as coordenadas
bancárias da empresa lesada onde legitimamente as transferencias e depositos
deveriam ser feitos, para uma outra conta, no caso da sua empresa, com único
propósito de apropriar-se dos dinheiros da empresa), invertendo o título da
posse ou detenção.
Esta apropriação ou inversão do título
da posse ou detenção (deslocação da propriedade) é feita através da prática de
acto ou actos dos quais resulte, inequivocamente, a intenção de o agente de
fazer sua a coisa (negócio).
- O elemento subjectivo é
precisamente a intenção/vontade dessa apropriação que está subjacente à prática
desses actos pelo agente e que, objectivamente, demonstram essa sua intenção
dolosa.
Podendo ser o dolo em qualquer das suas modalidades
previstas no art.º 12º do C. Penal.
Em suma, através deste tipo-legal de crime o
legislador visou proteger (como bem jurídico merecedor de tutela penal) a
propriedade alheia no contexto de uma relação de fidúcia (de confiança conforme
consta da nomenclatura do crime) entre o agente e o proprietário, em que o
agente inverte do título de posse de um bem adquirido por título não
translativo da propriedade e nessa relação fáctica de domínio sobre
essa coisa (que detém em nome alheio, do proprietário) e, aproveitando-se
disso, o agente não lhe dá um certo destino (como era suposto fazer no
cumprimento da sua obrigação para com o proprietário), mas dá-lhe outro,
passando a comportar-se como seu proprietário, agindo com “animo domini”.
Contrariamente ao crime de furto, no crime de abuso
de confiança a coisa móvel não é subtraída a outrem pelo agente do crime, ela
já está em seu poder, mas por título não translativo de propriedade, dando-lhe,
porém, o agente do crime um destino diferente daquele para que foi confiada.
Ao passo que, no crime de furto (em que
a intenção de apropriação, de uma coisa que não detém, é um elemento do tipo
subjectivo), no crime de abuso de confiança a apropriação é um dos elementos do
tipo objetivo deste ilícito e, para além dele, o outro elemento exigido é que o
agente do crime exteriorize o “animus” ou intenção dessa apropriação
(ilegítima) através de um comportamento revelador e executório, como é o caso.
Isto é, através da prática de qualquer acto que, objetivamente, seja idóneo e
concludente no sentido de revelar tal intenção ilegítima (de inversão do título
da posse ou detenção) executada ou consumada como tal (e não em nome do
legítimo proprietário).
Ora, face à factualidade apurada no caso em apreço (supra
transcrita e aqui dada por reproduzida) estão preenchidos estes requisitos
legais.
Pois, conforme já vimos, o arguido
foi-lhe confiada a função de gerente de um posto de abastecimento (incluindo o
restaraurante e a recauchutagem), com determinadas coordenadas bancárias
pertecentes a empresa OOOOOOOO, onde poderia se proceder os pagamentos
quer dos combustiveis, quer de outros serviços prestados por aquela.
O arguido aproveitando-se da confiança, não deu a
esses valores o destino que era suposto no cumprimento da sua obrigação para
com a empresa, invertendo o título da posse, apropriou-se deles como se fossem
coisas suas e com essa mesma intenção dolosa, deslocando a propriedade e
dispondo deles (valores) como se fossem seus e em seu proveito, com enorme prejuízo
do direito de propriedade da lesada, num valor de kz. 33.704.265,00 (trinta e
três milhões, setecentos e quatro mil duzentos e sessenta e cinco kwanzas).
d) Alteração da parte
que relega a liquidação em execução de sentença para o Tribunal cível;
O recorrente requer a esta instância a alteração da parte
que relega a liquidação de sentença para o Tribunal Cível, porém, da reapreciação
do acórdão em crise, constatamos que o mesmo apresenta dois resultados de
auditoria diferentes, sendo o primeiro fixado pela auditoria interna feita pela
ATA, no valor em kz. 33.704.265,00 (trinta e
três milhões, setecentos e quatro mil duzentos e sessenta e cinco kwanzas), e o
segundo fixado pela Delegação das Finanças da Huila, no valor de kz.
19.529.539,31 (dezanove milhões, quinhentos e vinte e nove mil e quinhentos e
trinta e nove kwanzas e trinta e um cêntimo).
Como se pode observar a olho nu, o Tribunal a quo teria e
bem em função dos factos que os autos deram como provados, fixar o valor
indemnizatório que a empresa lesada requere, isto e, kz. 19.529.539,31
(dezanove milhões, quinhentos e vinte e nove mil e quinhentos e trinta e nove
kwanzas e trinta e um cêntimo), mas preferiu relegar para outro Tribunal.
Dispõe o artigo 565º do C. Civil, que “devendo a
indemnização ser fixada em execução de sentença, pode o Tribunal condenar desde
logo o devedor no pagamento de uma indemnização, dentro do quantitativo que
considere já provado”.
Como se pode observar e porque na prossecução dos autos a
digna representante do Mº Pº nesta instância, é de opinião a fixação do valor requerido.
e) Da condenação do arguido AAAAA, ao pagamento de uma
indemnização de kz. 19.529.539,31 (dezanove milhões, quinhentos e vinte e nove
mil, quinhentos e trinta e nove kwanzas e trinta e um cêntimos).
Ora, ainda o recorrente
nas suas conclusões, requere que se condene o arguido a indemnizar a empresa no
valor de kz. 19.529.539,31 (dezanove milhões, quinhentos e vinte e nove mil,
quinhentos e trinta e nove kwanzas e trinta e um cêntimos).
No caso em apreço,
não há dúvidas que a conduta do arguido causou a lesada enorme prejuizos,
porém, para o ressarcimento a empresa requereu a quantia acima mencionada, por
ser o valor provado e apurado pelos peritos da Delegação Provincial das
Finanças.
Também não há
dúvidas de que o arguido foi responsabilizado criminalmente nos termos e com os
efeitos sobreditos, pela imputada prática criminal.
Assim sendo,
encontram-se preenchidos todos os requisitos previstos nos art.ºs 483º ss do
Código Civil, segundo os quais:
- Aquele que, com
dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer
disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a
indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.
Nesta senda, o artigo 562º do mesmo
diploma diz que “quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a
situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à
reparação.
A obrigação de
indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria
sofrido se não fosse a lesão. Cfr. artigo 563º.
Refere o artigo 564º do Código acima,
que o dever de indemnizar compreende não só o prejuízo causado, como os
benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão.
Conforme Pires de
Lima e Antunes Varela em “Código Civil Anotado”, vol. I, 4ª edição revista,
págs. 470-476 e 576-580: a responsabilidade civil por factos ilícitos e
culposos pressupõe sempre (cumulativamente) que haja um facto ilícito e
culposo, imputável ao lesante e que daí advenha, como consequência causal, um
dano.
O dano pode ser
emergente (prejuízo causado nos bens ou nos direitos existentes na titularidade
do lesado) ou um lucro cessante (benefício que o lesado deixe de obter por
causa do facto ilícito).
A obrigação de
indemnização visa reconstituir a situação do lesado anterior à lesão, repondo
as coisas no estado em que estariam se não fosse a lesão. Porém, como nem
sempre é possível essa reconstituição natural, o que não é o caso, então a
indemnização do lesado faz-se em dinheiro através do valor correspondente à
lesão patrimonial.
Por conseguinte e
voltando ao caso em apreço, face aos apurados danos patrimoniais sofridos pela lesada, conclui-se que
o arguido é responsável pelo ressarcimento dos mesmos.
Realmente, examinados e reexaminados os autos, entende-se
que o arguido causou prejuízos não reparados até ao momento correspondentes ao
valor requerido pelo Mº Pº junto do Tribunal recorrido.
Nesta conformidade, deve o arguido reconstituir a
situação patrimonial que a lesada teria se não fosse aquela actuação ilícita e
culposa daquele, através da correspondente obrigação de indemnização provisória
no valor total acima referido, nos termos do artigo 87º nº 2 do C.P.P.
conjugado com artigo 565º do C. Civil.
Assim sendo, é justo que o arguido seja condenado a
indemnizar a empresa lesada, conforme requerido e consagrado pela norma civil.
DECISÃO:
Nestes
termos e nos demais de direito, os desta câmara, reunidos em conferência,
acordam em nome do povo, condenar o arguido AAAAA, com os demais sinais de identificação dos autos, no pagamento
de kz. 19.529.539,31 (dezanove milhões, quinhentos e
vinte e nove mil, quinhentos e trinta e nove kwanzas e trinta e um cêntimos), a
título de indemnização a empresa OOOOOOOO.
No demais se confirma o
decidido.
Registe e notifique.
Cumpra o mais de lei.
Lubango, aos 22 de Junho
de 2023.
O Juiz Relator; Bento
Camenhe
1º adjunto; Adão
Chiovo.
2º adjunto; Armando
Do Amaral Gourgel