Processo
0001//2022
Temática
Habeas Corpus. Requerimento de Providência de Habeas Corpus. Indeferimento do pedido de providência de Habeas Corpus.
SENTENÇA
PROC N.º 001/22
O Juiz
Desembargador Presidente, nos presentes autos de recurso para o Tribunal da
Relação do Lubango, decide:
RELATÓRIO.
LL e JJ, devidamente identificados
nos autos, preventivamente presos, por eles e seu ilustre mandatário judicial, vêem
requerer nos termos do artigo 68º da CRA, conjugado com os artigos 288.º e
290.º e seguintes do C.P.P, aprovado pela Lei 38/20 de 11 de Novembro, a providência
de Habeas Corpus, alegando em síntese, estar detido desde o dia 16 de Setembro
de 2021, indiciados pela prática dos crimes de Associação Criminosa, p. e p. pelo
art.º 296º, Peculato p. e p pelo art.º 362º, Participação Económica em Negócio
p. e p pelo art.º 364º, Tráfico de Influência p. e p. pelo art.º 366º todos do
Código Penal e Branqueamento p. e p pelo art.º 82º da Lei 5/20, de 27 de
Janeiro.
Tudo porque no dia 16
de Setembro de 2021, os arguidos ao apresentarem-se voluntariamente, como era habitual
ao instrutor do processo, foram imediatamente detidos fora do flagrante delito,
em cumprimento dos mandados de detenção emitidos pelo Digno Magistrado do MºPº.
Concluindo que nos
termos do art.º 67º n.º 1 da CRA, e conjugado com o art.º 254º do C.P.P.,
tornam a detenção dos arguidos ilegal, configurando-se apenas por abuso de
poder.
Os autos foram com
vista ao Digno Magistrado do MºPº, a folhas 10 nos termos e para o efeito do
art. º 291º al. b) do C.P.P., o Magistrado do MºPº emitiu a seguinte promoção:
“compulsado o processo principal e sobretudo o despacho de indiciação, não
nos parece haver qualquer situação que configure prisão ilegal, pelo que,
promovo o indeferimento da presente providência. ”
A Mmª Juíza Presidente
da Comarca do Lubango, por decisão datada de 25/09/2021, após a realização de
algumas diligências, indeferiu o presente pedido de Habeas Corpus por entender afigurar-se
tempestivo e legal a sua detenção.
O ilustre mandatário,
não se conformando, veio interpor recurso desta decisão, por força do estatuído
no art.º 290.º, n.º 3 do C.P.P.
Neste recurso, vem
invocar que os seus constituintes foram constituídos arguidos e respondia em
liberdade desde o ano de 2018.
Assim, no dia 16 de
Setembro de 2021, apresentaram-se voluntariamente ao instrutor do processo e
foram detidos fora do flagrante delito, e, consequentemente, presentes ao Mº Pº
para o seu interrogatório e após o mesmo aplicou a medida de coacção mais gravosa
“de prisão preventiva”.
Alegam que no dia 21
de Setembro de 2021, intentaram providência de Habeas Corpus para ver restituída
a liberdade dos seus constituintes, com fundamento na violação dos pressupostos
e das condições de aplicação da prisão preventiva prevista no número 4 al. f)
do art.º 290º, sendo notificado do indeferimento da decisão no dia 03 de
Novembro de 2021, onde a Mmª Juíza Presidente se baseou nos prazos de prisão
preventiva, o que não consubstancia o fundamento do pedido de Habeas Corpus,
tal como se pode constar da sua simples leitura.
Por isso, não se pode
deixar de concluir que o despacho da Mm.ª Juíza Presidente “a quo”, padece de
erro de direito, concretamente erro de julgamento, reconduzindo ao erro de
apreciação e ponderação da providência de Habeas Corpus, pois:
No caso em apreço, trata-se
da ilegalidade dos mandados de detenção fora do flagrante delito, emitidos em
clara violação dos art.º 254º e 263º do C.P.P, por inexistência nos autos de razões
justificativas das circunstâncias das quais, dependem a validade das suas
detenções fora do flagrante delito.
Os autos não contêm
elementos que revelem que os recorrentes se encontravam em fuga nem tão pouco
que existiam sinais de que os mesmos pretendiam fugir, tendo sido detidos
quando notificados para comparecerem ao instrutor do processo, como era
habitual, o que não justifica as detenções, ou seja;
Nos presentes autos
não se concretiza quais os fundados receio de fuga em que se baseou o MºPº,
para ordenar as detenções dos recorrentes, sendo omisso igualmente, à
justificação da necessidade de detenções urgentes, da existência de perigo real
de perturbação da instrução do processo e da continuação pelos recorrentes das
actividades criminosas ou de perturbação grave da ordem e tranquilidade
pública.
Por essa razão,
entende-se que a detenção dos recorrentes, bem como todos os actos subsequentes,
se encontram feridos de vícios de inconstitucionalidade e ilegalidades.
Tais vícios foram
expressamente arguidos pelos recorrentes durante os primeiros interrogatórios,
pela forma como foram detidos, claramente inconstitucional e ilegal, por violar
as garantias do processo criminal, que assistem aos arguidos, consagrados de
forma taxativa no art.º 67º n.º 1 da CRA, inconstitucionalidade que também se
suscita, para os devidos efeitos pela sua máxima gravidade, pois, por força do
mesmo normativo “ninguém” pode ser detido, preso ou submetido a julgamento
senão nos termos da Lei.
Nesta instância, foi solicitado
informação ao Tribunal “a quo”, sobre o estado do processo, se os arguidos se
encontravam na situação de detidos ou soltos. Volvidos cerca de 7 dias a Mmª
juíza Presidente informou que os arguidos encontram-se detidos, o processo foi
acusado a 23 de Fevereiro e deu entrada em juízo.
Seguidamente os autos
foram com vista ao Digno Magistrado do MºPº deste Venerando Tribunal que emitiu
o seu douto parecer, o qual transcrevemos:
“Salvo melhor opinião em contrário, não se vislumbra que os requerentes
estejam numa situação, que configure prisão ilegal, com fundamento em uma das alíneas
do número 4 do art.º 290º do Código P. Penal”.
É CHEGADO, O MEMENTO
DE APRECIAR E DECIDIR
O Poder Judicial,
constitui a mais sólida salvaguarda dos direitos individuais dos cidadãos, pelo
facto de ser a garantia da própria ordem jurídica do Estado.
A Providência de Habeas
Corpus, não se substitui, nem pode substituir-se aos recursos ordinários, ou
seja, não é, e nem pode ser meio adequado de pôr termo a todas as situações de ilegalidade
da prisão. Está reservado, quanto mais não fosse por implicar uma decisão
verdadeiramente célere, mais precisamente “num prazo nunca superior a cinco
dias úteis”, art.º 292º n.º 5 e 294º n.º 3, ambos do C.P.P. Para casos de ilegalidade,
porque manifesta e indiscutível e sem margem para dúvidas como são os casos de
prisões ordenadas por entidades incompetentes, mantida para além dos prazos
fixados na lei ou mantida para além da decisão judicial.
COMPETÊNCIA
DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO LUBANGO.
Da
competência do Juiz Presidente do Tribunal da Relação do Lubango para conhecer
deste feito.
O
presente Habeas Corpus, foi endereçado ao Venerando Juiz Conselheiro Presidente
do Tribunal Supremo. Todavia, deu entrada no Tribunal da Relação do Lubango, o
que poderia suscitar dúvidas quanto à competência deste juízo, (fls. 17).
Apesar
da Constituição da República de 2010, no capítulo referente ao Poder Judicial,
estabelecer que “o sistema de organização e funcionamento dos Tribunais
compreende uma jurisdição comum encabeçada pelo Tribunal Supremo e integrada
igualmente por Tribunais da Relação e outros Tribunais (art.º 176º, nº2, al. a)
C.R.A.), ainda assim, por algum tempo continuou a vigorar, ainda que de forma
implícita, o que dispunha a Lei nº 18/88, de 31 de Dezembro, Lei do Sistema
Unificado de Justiça que dispunha, no nº 1 do seu art.º 6º que “os Tribunais
estão divididos de acordo com a seguinte hierarquia;
-
Tribunal Supremo; - Tribunais Provinciais; - Tribunais Municipais.
Foi
então necessário reformar a legislação até então vigente para conformá-la à
Constituição da República de Angola, o que levou a que fosse discutida,
aprovada e entrasse em vigor a Lei nº 2/15, de 2 de Fevereiro, Lei Orgânica
Sobre a Organização e Funcionamento dos Tribunais da Jurisdição Comum, e a Lei
nº 1/16, de 10 de Fevereiro, Lei Orgânica Dos Tribunais da Relação, com as
devidas alterações feitas pela Lei n.º 3/22 de 17 de Março, mais conformes à
Constituição.
A
esse quadro de legislação oriundo da reforma legislativa, acresce a Lei nº
6/21, de 1 de Abril, Lei que Repristina Normas do Código de Processo Civil em
Matéria de Recursos.
Com
a entrada em vigor dessa legislação, materializou-se o imperativo
constitucional, e foram instalados e entraram em funções, os Tribunais
intermédios, mais precisamente, os Tribunais da Relação de Benguela, Luanda e
Lubango, sendo este último com jurisdição na Região Judicial IV, com sede no
Lubango e que compreende as Províncias Judiciais do Cuando Cubango, Cunene,
Namibe e Huíla, de onde é oriundo o presente Habeas Corpus.
Com
base na legislação indicada nos parágrafos que antecedem, e com a entrada em
vigor do Novo Código de Processo Penal, a competência para conhecer de recursos
de Habeas Corpus, compete ao Juiz Presidente do Tribunal imediatamente Superior,
como dispõe o art.º 68º da CRA e 294º n.º 1 do C.P.P.
LEGITIMIDADE
A
providência de “Habeas Corpus” pode ser requerida pelo detido ou preso, ou
qualquer cidadão no gozo dos seus direitos civis e políticos, a pedido ou no
interesse daquele, nos termos do nº 6 do art.º 290º do C.P.P., sendo que no
caso “subjudice” foi intentada pelo mandatário dos requerentes.
OBJECTO
Os
requerentes, reclamam estarem sujeitos a uma prisão ilegal, pelo facto de terem
sido detidos fora do flagrante delito, levados ao interrogatório do MºPº e este
por sua vez ordenou a prisão preventiva dos mesmos, ao arrepio do preceituado
dos art.º 254º e 263º ambos do C.P.P.
Entende
que os mandados emitidos pelo Magistrado do MºPº são ilegais, e que a detenção
deles se procedeu fora do flagrante delito.
Depreende
a defesa que os seus constituintes deveriam continuar em liberdade por não
existirem razões de fuga, perturbação da instrução do processo, da continuação
pelos recorrentes da actividade criminosa, ou de perturbação grave da ordem e
tranquilidade pública.
Conclui
que a detenção dos recorrentes, bem como todos os actos subsequentes, se
encontram feridos de vícios de inconstitucionalidade e ilegalidades.
FUNDAMENTAÇÃO.
A pretensão formulada pelo
requerente nestes autos pressupõe, essencialmente, uma interpretação do
preceituado no art.º 68º da Constituição, de onde resulta poder o interessado
requerer, perante o Tribunal competente, a providência de Habeas Corpus,
em virtude de detenção ou prisão ilegal. Sendo o único caso de garantia
específica e extraordinária constitucionalmente prevista para a defesa dos
direitos fundamentais, o Habeas Corpus evidencia a importância
do direito à liberdade constituindo uma “garantia privilegiada” daquele direito
(cf. Gomes Canotilho, /Vital Moreira,
Constituição da República Portuguesa — Anotada, vol. I, Coimbra:
Coimbra Editora, 20074, anotação ao art. 31.º/ I, p. 508).
São exigidos
cumulativamente dois requisitos:
1) abuso de poder, lesivo
do direito à liberdade, enquanto liberdade física e liberdade de movimentos e,
2) detenção ou prisão ilegal.
Isto é, a interposição
desta providência de Habeas
Corpus só é possível desde que se verifiquem estes requisitos
muito restritos e só pode ser deferida se verificados um ou mais destes
pressupostos.
Por sua vez, o art.º 290.º, n.º 4, do C.P.P. faz depender a
procedência da petição de Habeas Corpus do facto de, a prisão:
a) Ter sido efectuada ou ordenada sem mandado de autoridade
competente;
b) Estar excedido o prazo para a entrega do arguido detido
ou preso preventivamente ao Magistrado competente para validação da detenção ou
prisão preventiva;
c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por
decisão judicial.
d) Manter-se a privação da liberdade fora dos locais para
este efeito autorizados por Lei;
e) Ter sido a privação da liberdade ordenada ou efectuada
por entidade incompetente;
f) Haver violação dos pressupostos e das condições da
aplicação da prisão preventiva.
No caso dos autos, os recorrentes entendem que as detenções,
bem como todos os actos subsequentes, se encontram feridos de vício de
inconstitucionalidade e ilegalidade.
Vejamos.
Um sublinhado para a natureza excepcional da detenção
fora do flagrante delito, que se encontra expressamente consagrado no art.º 254.º,
do C.P.P, onde se afirmam que fora de flagrante delito, a detenção só é
permitida quando houver razões fundadas para crer que a pessoa a deter não se
apresentaria voluntária e espontaneamente perante a autoridade judiciária no
prazo que lhe fosse fixado.
Dispõe o nº 2 do mesmo art.º que a detenção a que se
refere este número anterior é efectuada por mandado do Ministério Público na
fase de instrução preparatória e pelo Juiz nas fases restantes.
No caso em análise, os requerentes contrariamente o
que suscita do parecer do MºPº, junto do Tribunal “a quo” e do parecer do MºPº
junto deste Venerando Tribunal, não resulta a providência em qualquer excesso
de prisão preventiva, mas nos desrespeitos pelos requisitos e formalismos dos mandados
de detenção fora do flagrante delito, e na severidade da medida de coação imposta
aos seus constituintes.
A questão que se coloca é de saber se os mandados de
captura emitidos na fase de instrução processual e a medida de prisão
preventiva aplicada pelo MºPº preenchem os pressupostos e requisitos do
carácter excepcional da providência do Habeas Corpus.
Dos autos resulta que indiciados, foram emitidos
mandados de captura para o interrogatório que culminou na aplicação da prisão
preventiva, porque se considerou como a mais adequada. Não se vislumbrando que
os fundamentos invocados pelos requerentes, caibam na previsão dos normativos
acima mencionados que constituem os fundamentos deste tipo de providência de
carácter excepcional.
Deste modo, os requerentes perante a insatisfação com
a emissão de mandados de captura e da ordem de prisão preventiva, o meio de
reacção mais apropriado é o de recurso ordinário e não o de Habeas Corpus.
Assim sendo, as eventuais irregularidades quanto a
emissão, tramitação e cumprimento de mandados de captura, bem como a aplicação
das medidas de coação quanto a sua proporcionalidade, adequação e finalidade,
devem ser refutadas em sede de recurso ordinário.
Com os fundamentos descritos, é de concluir que não
assiste razão aos recorrentes.
Nestes termos, indefiro o pedido de Habeas Corpus,
devendo os arguidos aguardarem os ulteriores termos do processo em prisão.
- Notifique.
- Lubango, 30 de Março de 2022.
O Juiz Desembargador Presidente
Armando do Amaral Gourgel