Processo
0138/2024
Relator
Dr. Armando Gourgel
Primeiro Adjunto
Dr. Adão Chiovo
Segundo Adjunto
Dra. Lúcia Santiago
Descritores:
Vício insanável arguida. Anular julgamento. Não dar provimento ao recurso.
I.
O Tribunal “a quo” não condenou o arguido no dever de indemnizar
a vítima, pelos danos sofridos, atropelando, claramente, o artigo 30.º, n.ºs 1,
2 e 3, da Lei n.º 25/11, de 14 de Julho, Lei Contra a Violência Doméstica.
II.
O Tribunal recorrido ao não arbitrar o
valor compensatório, de todo, desconsiderou quer a culpa do agente, quer o
sofrimento que a menor passou, pese embora, a indemnização não expungiria o
flagelo, entendemos que, de certa forma, repararia os danos e a sua arbitração,
nesta Instância, corrigiria o lapso cometido pelo Tribunal “a quo” e cumpriria o emanado no artigo
30.º, da Lei n.º 25/11, de 14 de Julho, Lei Contra a Violência Doméstica, ou
seja, esta instância agiria em obediência ao princípio da legalidade.
III.
No entanto, em observância ao
princípio de “reformatio in pejus”, previsto
no artigo 273.º, do C.P.P., não será possível, nesta Instância, condenar o
arguido na indemnização pelos danos causados à ofendida, pois, a suceder,
feriria o referido princípio, uma vez que o recurso foi interposto no exclusivo
interesse do arguido.
IV.
O recorrente afirma que o facto de a menor ofendida não ter sido ouvida
pelo Juiz de Garantia, nos termos da al. g) do artigo 140.º, conjugados com o
n.º 2 do referido artigo e com a alínea h) do artigo 313.º, ambos do C.P.P.,
constitui nulidade insanável e, em consequência disso, deve ser anulado o
julgamento.
V.
A menor ofendida foi ouvida, em sede de julgamento, onde estiveram
presentes o Digno Magistrado do Ministério Público, o Advogado Assistente, bem
como o Advogado da defesa. Assim, esta diligência veio sanar a nulidade
arguida.
VI.
O recorrente afirma que o Tribunal “a quo” o condenou nos factos
diferentes dos constantes na acusação e no despacho de pronúncia, no entanto,
verificada a sentença em crise, denota-se que o Tribunal condenou nos factos
constantes nos autos, valorados em sede de julgamento, tendo afastado apenas a
questão da introdução do membro viril do arguido na cavidade vaginal da menor.
VII. Acordam
em conferência, os juízes desta Câmara Criminal, em nome do povo, em não dar provimento
ao recurso interposto pelo recorrente AAAAAA.
PROC. N.º138/2024
Arguido: AAAAAAAA.
A C Ó R D Ã O
*
NA
CÂMARA CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO LUBANGO, ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, EM
NOME DO POVO: ============================================
I.
RELATÓRIO
=================================
Mediante
Processo Comum deduzido pelo Ministério Público, a Segunda Secção da Sala de
Questões Criminais do Tribunal da Comarca de Moçâmedes julgou o arguido AAAAA, também
conhecido por “WWWW”, de 33 anos de idade, filho de SSSSS e de FFFFFFFF,
natural do Lubango, Província da Huíla, residente, antes de preso, nesta cidade
do Lubango, no bairro Hélder Neto, acusado pela prática de dois crimes de
Violência Doméstica, um sob a forma de Violência Sexual do tipo previsto nos
artigos 2.º (corpo), 3.º, n.ºs 1 e 2 al. a), 25.º, n.º 1 al. c), todos da Lei
n.º 25/11, de 14 de Julho, Lei Contra a Violência Doméstica, punível nos termos
do artigo 394.º do Código Penal de 1886, por força do artigo 6.º e do n.º 2 do
art.º 25.º, ambos da lei em referência e do n.º 2 do artigo 2.º do Código Penal
Angolano vigente e o outro sob a forma de Violência Psicológica p. p. pelo
art.º 2.º (corpo), 3.º, n.ºs 1 e 2, al. c) e 25.º, n.º 1, al. a) e n.º 2, todos
da Lei n.º 25/11, de 14 de Julho, Lei Contra a Violência Doméstica.
=================================
Realizada
a instrução contraditória, consequentemente, foi, o arguido, pronunciado como
autor material dos crimes atrás enunciados. ========================================
Efectuado
o julgamento e depois de respondido os quesitos, foi, a acusação, julgada
procedente e provada, sendo, em consequência, o arguido condenado, por sentença
datada de 26 de Setembro de 2024 (fls. 306 a 320), nas seguintes penas:
1- 5
anos de prisão, pelo crime de abuso sexual de menores de 14 anos. E;
==========================
2- 8
anos de prisão, pela prática de um crime de Violência Psicológica;
==========================
Em
cúmulo jurídico, foi, o arguido, condenado na pena única de 12 (doze) anos de
prisão; ============================
Kz.
100.000,00 (cem mil Kwanzas) de taxa de justiça. =======
Desta
decisão, o arguido, através do seu mandatário judicial, tempestivamente,
interpôs recurso, por não conformação, ao abrigo do disposto nos artigos 472.º
e dos n.ºs 1 e 3 do artigo 475.º, ambos do C.P.P., tendo apresentado as suas
alegações a fls. 329 a 334 das quais se extraem, da motivação, as conclusões
que a seguir se transcrevem: ==================
“a) Ao decidir como decidiu mal caminhou o
Tribunal a quo pelo facto de não ter cumprido com o estabelecido no artigo
254.º, n.º 4 do Código de processo Penal, isto é, pelo facto do recorrente ter
sido detido na Província da Huíla no dia 19 de Agosto de 2023 e só foi presente
ao Juiz de Garantias 72 horas depois. =====================================
b) Na fase da
instrução o mandatário do recorrente requereu a instrução contraditória dos
presentes autos, com o seu requerimento, requereu várias diligências, o que o
Juiz de Garantia não atendeu e que chegados na fase judicial, foram, novamente,
levantadas e requeridas ao Juiz da Causa, o que não atendeu ignorando a lei.
=================================
c) No dia da primeira
audiência dos presentes autos, isto é, 06 de Junho de 2024, como se pode
confirmar na contestação junto aos autos a fls. 192 a 197, o mandatário do
recorrente levantou como questão prévia e incidental o facto da menor ofendida
não ter sido ouvida pelo Juiz de Garantia e fundamentou nos termos do artigo
140.º al. G), conjugado com o n.º 2 do citado artigo, do Código do Processo
penal, cuja consequência é a nulidade insanável, conjugado al. h) do artigo
313.º Este acto, como diz a epigrafe do artigo 313.º do Código de Processo
penal, são “Actos a praticar pelo Juiz de Garantia”, que tinham de ser
praticados pelo Meritíssimo Juiz de Garantia, isto é, “Ordenar e proceder à
prestação antecipada de depoimentos ou de declarações, o que não se verificou.
O que o Tribunal a quo não decidiu. ================================
d) O mais grave foi
mesmo ao se fazer remissão do artigo acima citado com o artigo 317.º do Código
Penal Angolano, cuja epigrafe diz “prestação antecipada de depoimentos e
declarações”, nos termos do n.º 3 do artigo 317.º do Código de Processo Penal
Angolano, a situação levantada é bem clara, passamos a citar a norma violada “Nos
crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual de menor, a prestação
antecipada de depoimentos ou a tomada de declarações da vítima são obrigatórias
salvo se, ela já for maior”, a pretensão do arguido não foi atendida.
==========
e)
Surpreendentemente, os autos foram devolvidos ao Juiz de Garantia para se
pronunciar sobre a nulidade insanável invocada. =============
f) As provas foram
desvalorizadas, ou seja, o Tribunal a quo não atendeu e nem considerou as
provas que foram produzidas em sede das audiências de discussão e julgamento.
=====================================
g) O Tribunal a quo
condenou o recorrente nos factos diferentes que foram narrados na acusação e no
despacho de pronúncia, basta analisar acusação, pronúncia e a sentença.
===============================
h) Outrossim, o
Tribunal não fundamentou quais foram as provas que estiveram na base da
formação da sua convicção para condenar o recorrente nos termos em que
condenou, tendo se limitado apenas em decidir.
====================================================
i) Não é possível
haver violação sem penetração. ===================
Terminou
pedindo a revogação da douta sentença proferida pelo Tribunal “a quo” e, em consequência, alterar a
medida de coacção pessoal aplicada ao arguido, e/ou anular o julgamento em
função do vício insanável detectado, nos termos do artigo 140.º al. g)
conjugado com o n.º 2 do citado artigo e com al. h) do artigo 313.º, ambos do
C.P.P. ========================
O
Ministério Público não contra alegou. ==================
Admitido
o recurso, o mesmo foi remetido a esta instância para a sua apreciação.
====================================
Chegados
aqui, foram mandados seguir os termos do recurso por nada obstar ao seu
conhecimento. ===================
Seguidamente, foi com vista
ao Digno Magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal, que emitiu o
seu douto parecer, o qual, resumidamente, transcrevemos: ==================
“(…) Questões Prévias: ========================================
1- A ofendida só foi submetida à exame ginecológico 3
anos depois da prática do acto. Apesar de se ter verificado que a criança
apresentava doença venérea, cuja transmissão é sexual, este facto não foi imputado
ao arguido, porque o mesmo não foi submetido ao tipo do mesmo exame, que, em
princípio, faria sentido se a queixa fosse feita logo após a seguir o facto;
=========================
2 – O Tribunal “a quo” não fixou valor algum que
servisse de compensação pelos danos profundos provocados contra o corpo e o
estado psicológico da criança. (…);
================================================
(…) Do Direito: ===============================================
(…) Os crimes de que o arguido foi acusado e pronunciado
se enquadram no tipo de crimes contemplados no âmbito da Lei Contra a Violência
Doméstica onde se destaca a Violência Sexual, além da Violência Psicológica,
que tem o escopo de intimidar a vítima para não ter coragem de denunciar o
abuso sexual contra ela praticado; ===================
O abuso sexual referido na al. c) do n.º 1 do art.º 25
do diploma acabado de citar, é aquele que se consubstancia no tipo, onde se
pode ler: “o abuso sexual a menores de idade e idosos sob tutela ou guarda e
incapazes”; ==
Entretanto, “o crime em apreço, em qualquer das
configurações típicas, é um crime doloso, sendo que o dolo deve abarcar todos
os elementos do tipo e assim, também, a idade da vítima”. (Cfr. Angelino
Hungulo Lourenço, idem, pag. 52); ===============================================
Quanto à intenção criminosa, pressupõe que o agente
tinha consciência da menoridade da ofendida;
======================================
Para o caso em concreto, não se coloca o
desconhecimento da menoridade da ofendida, porque à olho nu, observa-se que se
tratava de uma criança, que até era o próprio arguido que, a pedido dos pais,
já levou a menor para à creche algumas vezes;
=======================================
A prática de actos sexuais com menores de uma certa
idade, desprotege o desenvolvimento integral da criança, (no caso em concreto,
o arguido criou na criança vítima uma desconformidade) a ponto de desviar a
capacidade de ser livre para se decidir em termos de relacionamento sexual, no
futuro, em função do trauma provocado com a violência sofrida; ==============
Trata-se de especial protecção sexual das crianças;
==================
Nisto consiste a tutela da autodeterminação sexual que
tem a finalidade de proteger o desenvolvimento da personalidade, visto sob perspectiva
de matriz sexual; ===============================================
No entanto, “o artigo que trata do crime de abuso
sexual de menor de 14 anos só se aplica sendo o sujeito passivo uma criança.
Pretende-se proteger o desenvolvimento sexual das crianças, preservando-as do
envolvimento prematuro em actividades sexuais. Criança para este efeito, é
qualquer pessoa menor de 14 anos.”; ===========================
Dito doutro modo: “o bem jurídico protegido é a
autodeterminação sexual, mesmo sem constrangimento pode prejudicar o livre
desenvolvimento da personalidade do menor, em particular para um crime de
perigo abstracto. Este preceito demarca uma fronteira absoluta para os
comportamentos sexuais com crianças menores de 14 anos, no respeitante a contactos
(acto sexual de relevo) são proibidos sem excepção”, (M. Miguez
Garcia/J.M.Castela Rio; Código Penal Português, Parte geral e especial, com
notas e comentários, 2ª edição; 2015, p. 759 e 760); ==============
Nos crimes sexuais contra a liberdade e autodeterminação
sexual, importa reter que não é a experiência vivida pelas crianças que está
espelhada nos respectivos tipos de crimes. Pois, as crianças aparecem nas
normas do Código Penal cristalizadas na sua imagem de inocência, o que
corresponde à fantasia dos adultos, surgem tipicamente na posição de vítimas de
crimes sexuais. (Cfr. Angelino Hungulo Lourenço, Código Penal Angolano, parte
especial, 1ª edição, 2021, pag. 50); ==========================
Entretanto, no decorrer deste processo, entrou em vigor
o novo Código Penal, que prevê o seu n.º 2 do artigo 2.º que sempre que as
disposições penais vigentes no momento da prática do facto forem diferentes das
estabelecidas em leis posteriores, aplica-se o regime que concretamente se
mostrar mais favorável ao agente; ===============================
Nesta senda, argumentou o Tribunal a quo que:
=====================
“Considerando o enquadramento jurídico penal da
conduta praticada pelo arguido, entende o Tribunal em aplicar a lei nova,
considerando-a como a mais favorável, tendo em conta, neste caso, a comparação
das penas mínimas e máximas das duas penalidades.”; =======================
Isto buscando as penalidades dos crimes de violação de
menor de 12 anos do artigo 394.º, de 8 a 12 anos de prisão, do CP de 1886; e a
penalidade do crime de abuso sexual de menor de 14 anos do artigo 192.º, n.º 1,
de 1 a 5 anos de prisão, do CP vigente, com o afastamento do abuso sexual com
penetração, conclusão a que chegou o Tribunal a quo; ================
O facto da conduta
do arguido ter sido subsumida em dois tipos legais de crimes, o que justificou
o concurso de infracções que culminou com a fixação de penas parcelares e
consequentemente pena única, é para todos efeitos admissível, até certo ponto;
===============================
O fundamento da conclusão n.º 1 do recorrente aponta
ser ilegal a prisão do arguido, porque a sua base não teve em conta a exigência
do n.º 4 do artigo 254.º do CPP; que determina: ==============================
“O detido deve ser presente pelo Ministério Público ao
Juiz de Garantias dentro das 48 horas, após a detenção, com termo de
apresentação que contém os motivos da detenção e as provas que a fundamentaram,
sob pena de o detido ser imediatamente restituído à liberdade.”; ===========
Assim, sem sombra de dúvida, o argumento do recorrente
é realmente de acolher, fazendo cumprir o que o Juiz de Garantias ignorou, que
seria restituir o detido à liberdade; ===================================
Quanto à situação do não cumprimento do plasmado no artigo
313.º al. h), a conjugar com o artigo 317.º, n.º 3, ambos do CPP; diligência
que tem a ver com prestação antecipada de depoimentos ou tomada de declarações
da vítima, quando se tratar de crimes contra a liberdade e autodeterminação
sexual de menor, por ser obrigatória; o caminho para se colmatar a omissão, nos
parece que passaria por se cumprir com o prescrito nos artigos 317.º, n.º 7 e
400.º, n.º 1, ambos do CPP; =================
Desta feita, se nos afigura que um dos caminhos para
se encontrar uma saída, seria da renovação da prova nos termos do artigo 485.º,
n.º 1 do CPP, ou reenvio do processo ao Tribunal a quo, para repetição do
julgamento; =================================================
Com relação às provas que o recorrente diz que, as produzidas
em sede do julgamento foram desvalorizadas e que o Tribunal não fundamentou as
provas que estiveram na base da formação da convicção para condenar o
recorrente nos termos que condenou, limitando-se a decidir, temos a dizer que o
recorrente devia ser mais claro possível; ======================
Pois, nos parece que limitou-se a ser genérico, sem
precisar quais as provas que queria que fossem invocadas;
================================
Nesta linha de pensamento argumenta Germano Marques da
Silva, a título de exemplo que: ==============================================
“As conclusões devem ser concisas, precisas e claras,
porque são as questões nelas sumariadas que hão de ser objecto da decisão;
=========
No que se refere às conclusões de direito não basta
dizer que foi violada uma determinada norma jurídica. Tratando-se de
divergência sobre o sentido de uma norma, é necessário indicar o sentido em
que, no entendimento do recorrente, o tribunal recorrido interpretou a norma ou
com que a aplicou e o sentido em que ela devia ter sido interpretada ou com que
devia ter sido aplicada”. (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal,
vol III, Editora Verbo, 2000, pag. 351); ================
A omissão de fixação de qualquer valor de compensação
pelos danos sofridos pela vítima: tanto corporais como morais, se nos afigura
ser possível a reparação desta falha nesta Instância de recurso, caso se
entenda dar confirmada a decisão do Tribunal a quo; =================
Portanto, por todo exposto, somos de parecer que o
recurso do recorrente deverá ser julgado procedente, tendo em conta a
necessidade da renovação da prova e/ou reenvio do processo ao Tribunal a quo,
para repetição do julgamento. Mas, antes, devia ser solto o arguido dada a
omissão que existiu, de não se cumprir o exigido no n.º 4 do artigo 254 do CPP”.
======================================================
Assim, em conformidade com
o disposto no artigo 479.º, n.º 1, do C.P.P., o Tribunal “ad quem”
admitiu o recurso por ser legal, legítimo e tempestivo, podendo ser tramitado,
em algumas fases, como de agravo em matéria cível. ==================
Os vistos legais foram
colhidos. =========================
QUESTÃO PRÉVIA
==================================
Torna-se necessário frisar
que, o Tribunal “a quo” não condenou o arguido no dever de indemnizar a
vítima, pelos danos sofridos, atropelando, claramente, o artigo 30.º, n.ºs 1, 2
e 3, da Lei n.º 25/11, de 14 de Julho, Lei Contra a Violência Doméstica, que
estabelece que: =========================
“À vítima de violência
doméstica é reconhecido o direito a obter, do agente do crime, de forma célere,
uma indemnização pelos danos sofridos. A indemnização referida no número
anterior deve ser arbitrada tendo em conta a gravidade da agressão e a condição
económica dos envolvidos”. =====================
Não se percebe por que
razão o Tribunal “a quo” postergou esse preceito legal, uma vez ter
provado que o recorrente agrediu, sexualmente, a menor XXXXXXX.
======================
II.
OBJECTO DO RECURSO
=======================
É consabido, em face do
preceituado no artigo 465.º, do Código de Processo Penal, que o objecto do
recurso penal é definido pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva
motivação, devendo, assim, a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se
às questões aí suscitadas, sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente
por serem obstativas da apreciação do seu mérito, nomeadamente, nulidades
insanáveis que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase.
Diferentemente dos processos cíveis, em que domina o princípio do dispositivo,
onde o andamento está sujeito ao impulso das partes e os Tribunais só podem
conhecer das questões que lhes são submetidas, nos processos penais vigora o
princípio do conhecimento amplo do recurso, partindo da ideia de que o objecto
do recurso é a decisão recorrida e não a questão por ela julgada, ainda que o
recorrente restrinja o objecto de recurso, devido à finalidade de interesse
público que ele visa alcançar. (Art.º 464.º, n.º 1 do CPP e Manuel Simas
Santos, Recursos Penais em Angola, pág. 77).
===============================================
Assim que, apesar do
recurso ter sido interposto pelo arguido, que devidamente adequou, não só as
alegações, como também as conclusões, que no caso em concreto deviam delimitar
o objecto de recurso, ainda cabe a esta Veneranda Instância apreciar o processo
e a matéria de recurso na generalidade, isto é, tanto da matéria de facto como
da matéria de direito, conforme estabelece o artigo 44.º, n.º 2 da lei n.º
29/22, de 29 de Agosto, Lei sobre a Organização e Funcionamento dos Tribunais
de Jurisdição Comum e artigo 464.º, n.º do CPP, bem como, o Ac. Relação do
Porto, 06/12/1930, Gaz. Rel. Lxª 44.º-248.
==========================================
Nestes termos, do exame
atento dos autos, define-se, como objecto do presente recurso, as seguintes
questões a conhecer:
– Se o facto do recorrente (arguido) ter sido presente
ao Juiz de Garantia, 72 horas depois da detenção, dá lugar à revogação da sentença
recorrida. ================================
– Se a falta de prestação antecipada de depoimentos ou
declarações constitui nulidade insanável. =================
– Se o Tribunal “a quo” condenou o recorrente nos
factos diferentes daqueles que constam da acusação e no despacho de pronúncia.
=========================================
– Se é possível, nesta Instância, fixar valor de
indemnização; =
III. FUNDAMENTAÇÃO ===========================
Delimitado
o objecto de recurso, cumpre-nos agora decidir as questões do mérito da causa
decorrente das conclusões definidas acima.
=====================================
Dita
a sentença recorrida na parte que releva para a apreciação do recurso o que a
seguir se transcreve: ==================
“II – Fundamentação:
=========================================
-
De facto.
==================================================
O Tribunal dá como
provado que: ================================
O casal, “FFFFFFF”
declarante, m. id. a fls. 39, e “RRRRRR” participantes. Id. a fls. 2 e 35, dos
autos, residiam, à data do facto, nesta cidade de Moçâmedes, precisamente, no
bairro da juventude, na localidade do Saco-Mar, numa residência composta por 3
(três) quartos, uma suíte, uma sala, uma cozinha, uma casa de banho e um anexo,
que os mesmos o fizeram de escritório localizado no quintal.
================================
Nesta residência,
viviam com o casal, uma irmã mais nova do declarante conhecida por “CCCCCCC”
declarante id. a fls. 80, e três filhos menores do casal, dentre eles, a menor
ofendida “XXXXXX”, de 4 anos de idade à data do facto, filha de FFFFFFF e de RRRRRRR,
natural e residente em Moçâmedes/Namibe, bairro da juventude, localidade do
Saco-Mar, m. id. a fls. 13; ===================================================
Sucede, porém, que no
primeiro semestre do ano de 2019, o casal recebe em casa, dois primos irmãos do
declarante, que vieram passar alguns dias de férias. Sendo um deles, o arguido
«AAAAAAAA», m.c.p. “MMMM”, solteiro de 32 anos de idade, arquiteto de
profissão, filho de DDDDD e de SSSSS, natural e residente no Lubango/Huíla,
bairro Hélder Neto, zona da Minhota, casa s/n.º, m. id. a fls. 19 e 46;
==========================
Terminadas as férias,
o arguido e o seu irmão regressaram para a Província da Huíla, já que o arguido
«AAAAAAAA» é natural e residente no município do Lubango;
========================================
Mas, ao terminar o
ano de 2019, entre os meses de Outubro e Novembro, o casal necessitou de fazer
algumas melhorias na residência, que passou por pintar as paredes da mesma. Por
este facto, o declarante “FFFFFF” telefonou e convidou para vir à Moçâmedes
fazer o trabalho, o seu primo irmão, o arguido «AAAAAAA» visto que é Arquiteto
de profissão e faz trabalhos de pintura; ==========================================
O arguido aceitou
fazer o trabalho, e o seu primo foi a sua busca na cidade do Lubango;
================================================
Assim, já com o
arguido na residência do casal, a fazer o trabalho de pintura, também lhe foi
incumbida a responsabilidade de apoiar os filhos do casal, tirando-os de casa
para escola e vice-versa, com a viatura pertencente à esposa do declarante e
mãe da menor ofendida, a participante, “RRRRRR” que se encontrava concebida e
considerada como gerada de risco, vide os autos a fls. 35;
============================
Sucede, porém, que
quando o casal se ausentava da residência para o serviço ou para outras
actividades e os irmãos desta para o colégio, o arguido convidava a menor “XXXXXX”
para ir até ao seu quarto no anexo (escritório) onde a mandava despir-se e
depois deitar-se de barriga para baixo na sua cama e aproveitava para a abusar
sexualmente, deitava-se por cima da menor, satisfazendo os seus desejos
libidinosos até ejacular;
Depois de satisfeito,
o arguido ameaçava a ofendida dizendo-lhe que se contasse alguma coisa em
alguém iria matá-la e matar a sua família e ordenava-lhe que fosse à casa de
banho lavar-se; ===================
Os abusos sexuais
foram praticados cerca de 4 (quatro) vezes, sempre com a mesma ameaça, que
faziam a menor não contar nada a ninguém; ======
Por este motivo, a
menor ofendida foi desenvolvendo um medo excessivo de estar perto do arguido,
ao ponto de começar a negar ser levada pelo mesmo à escola e à casa, e quando
assim o fizesse na presença do arguido, este, rapidamente, aproximava-se dela e
abraçando-a pedia-lhe desculpas como forma de impedi-la a confessar o facto;
=======================
Finalizado o trabalho
que o trouxe à Moçâmedes, o arguido regressou para a cidade do Lubango;
=========================================
Por outro lado, a
menor ofendida passou a desenvolver um quadro psíquico complexo. Pois, a nível
comportamental, esta começou a isolar-se, chorava e irritava-se frequentemente,
quando estivesse muito ansiosa comia em excesso e a apresentar sentimentos de
medo e vergonha (vide os autos a fls. 06);
====================================================
Passado algum tempo,
a menor ofendida começou a queixar-se de dores na bexiga e na região vaginal,
quando fizesse necessidades menores ou maiores. E, foi precisamente, nesse
período, que a sua mãe ao lhe despir a roupa interior, verificou a presença de
vestígios de sangue no biquíni, o que a causou uma inquietação, e procurou uma
médica informando-lhe de tal facto; ===================================================
Face ao quadro de
saúde que a menor apresentava, obrigou a sua mãe, em Fevereiro de 2023, a
leva-la a uma das clinicas do Namibe, que constatou-se, apresentar sinais e
sintomas de abuso sexual, e alertaram-lhe, que o corrimento vaginal que a menor
apresentava, só era possível a partir de um contacto sexual, era uma doença de
adulto (vide os autos a fls. 05);
====================================================
Inquieta com estas
informações e tendo em conta a timidez da filha e a forma como se comportava
diante do arguido, a declarante “RRRR”, passou a instruir a menor a não deixar
ninguém a levantar-lhe a saia, até que num certo dia ao questiona-la, se alguém
a terá levantado a saia, a menor pôs-se a chorar e assim se comportava sempre
que se falasse no assunto; ====
Até que, num dos dias
do mês de Março de 2023, a declarante “RRRR” perguntou à menor por que motivo
punha-se a chorar quando era questionada, se já alguém a terá levantado a saia,
e, em resposta, esta disse que sim, por um indivíduo que o seu pai havia levado
à casa, sem no entanto citar o nome do mesmo; =================================
Ao ouvirem tal
declaração os progenitores da menor decidiram leva-la à uma pediatra no
município do Lubango, vizinha Província da Huíla a quem a mesma contou o
sucedido e citou o nome do arguido como tendo sido o indivíduo que a tinha
abusado sexualmente; =======================
A menor foi
consultada por uma pediatra, que aconselhou os pais da mesma a procurarem um psicólogo.
E, depois de a menor ter sido apresentada a uma psicóloga, relatou o que se tinha
passado consigo e reafirmou que o arguido a tinha abusado sexualmente, usando
as seguintes expressões: Foram 4 vezes. Ele me chamava, mandava eu entrar no
escritório e tirava as cuecas e a minha roupa. Depois dizia para deitar de
barriga para baixo e punha “o coiso” dele (termo usado pela menor para
expressar o órgão genital masculino) nas minhas nádegas. Doía muito... depois
eu ficava suja... depois ele dizia que ia matar a mim e a minha família se eu
contasse para alguém. Era segredo... eu não podia contar para ninguém... ele ia
me matar. Eu não quero morrer, Sic (vide Relatório Clínico a fls. 05 e 07);
==========================================
Após se abrir com a
pediatra e a psicóloga, a menor abriu-se com a sua mãe, relatando os abusos
sexuais que sofreu com o arguido, o que fez com que a sua mãe participasse os
factos à polícia no pretérito mês de Agosto de 2023 (vide fls. 02);
=========================================
A menor foi de
imediato apresentada à Médica Legista que depois de a avaliar prescreveu que
actualmente quando a menor está a assistir televisão e vê pessoas a beijarem-se
ou em manifestações de carinhos, tem movimentos de convulsão (susto), que basta
chegar a um hospital que ela começa logo a chorar, continua a comer muito, a
virar os olhos e as vezes entortar a boca. E em jeito de conclusão prescreveu
que “a presença de bactéria Diplococos do Gram negativo encontrados no
resultado de exame do exudado vaginal da examinada é compatível com a doença de
transmissão sexual (gonorreia)” (vide Auto de Exame Directo Médico-Legal de
Natureza Sexual a fls. 54 e 55); ===============================
Desde o momento em se
descobriu que a menor foi abusada sexualmente, esta passou a ser acompanhada
psicologicamente com vista a eliminar-se os traumas que a mesma apresenta até
hoje, traumas estes que já foram descritos no relatório clinico de fls. 05 e 07
(vide Relatório Psicológico Forense a fls. 72 e 73); =========================================
A ofendida, também
foi submetida a exames de HIV-SIDA, de Hepatite e de VDRL, que foram todos
negativos (vide fls. 12); ===================
O Tribunal dá como
não provado que: =============================
O arguido tenha
introduzido o seu membro viril erecto na cavidade vaginal da menor ofendida,
visto que: do Exame Directo de Natureza Sexual e o Exame Ginecológico, a fls.
54 a 55 e 86, nada realça com precisão, sobre o aspecto da penetração,
declarando apenas que “foi observada integridade himenial” e “sem observar
laceração, escoriação, nem desgarro recente”. Também, pelo que, na data do
facto, o arguido contava com 28 anos de idade e a menor ofendida com 4 anos de
idade, realçando aqui, a desproporcionalidade em termos físicos de ambos;
===================
Ainda, dá como não
provado que, durante o encontro mantido entre o casal e os familiares, alguém
tenha proferido a expressão seguinte “desta vez o MMMMM, terá que arcar com as
consequências, não vamos tapar o sol com a peneira, pois que não é a primeira
vez”. Visto que, os declarantes não conseguiram precisar com clareza e certeza,
criando deste modo muitas dúvidas ao tribunal;
==========================================
- De Direito
==================================================
Diz o Direito Penal
que: ========================================
- Comete o crime de
Abuso sexual de menor de 14 anos, “Quem praticar acto sexual com menor de 14
anos ou o levar a praticá-lo com outra pessoa é punido com pena de prisão de 1
a 5 anos” (n.º1, do art.º 192.º, do C. Penal);
=====================================================
- Se houver
penetração sexual, a pena é de prisão de 3 a 12 anos, (n.º 2, do art.º 192.º,
do C. Penal); =====================================
- Aqui, nos encontramos
perante Crimes Sexuais, mais precisamente, Crimes Contra a Autodeterminação
Sexual; ========================
- Trata-se de crimes
dolosos, em que há lugar para o dolo eventual, que deverá ser afirmado logo na
base da actuação do agente na base da possibilidade do elemento típico se
verificar no caso, (art.º 171.º, n.º1, do C. Penal Português, de 2014, anotado
e comentado por, “Victor de Sá Pereira”, Juiz Conselheiro Jubilado do S.T.J. e
“Alexandre Lafayette”, Advogado, ponto 11 pág. 503); ==================================
- A lei, assim
presume que a prática de actos sexuais com menor, em menor, sobre menor ou por
menor de certa idade, desfavorece o desenvolvimento global do mesmo, sem chegar
a presumir, contudo, que »a pessoa não é livre para se decidir em termos de
relacionamento sexual». Trata-se de especial protecção dos menores, máxime das
crianças. É este o terreno próprio da tutela da autodeterminação sexual, onde
se protege o referido desenvolvimento da personalidade, encarado sob perspectiva
de matriz sexual, (art.º 171.º, do C. Penal Português, e 2014, anotado e
comentado por, “Victor de Sá Pereira”, Juiz Conselheiro Jubilado do S.T.J. e
“Alexandre Lafayette”, Advogado, ponto 4, pág. 501). ===============
Convicção
==================================================
Com efeito, o
Tribunal baseou a sua convicção na consideração da valoração conjunta da prova
produzida e careada aos autos em sede de instrução preparatória, instrução
contraditória e em audiência de discussão e julgamento; =======================================
Das quais, foram
discutidos os factos relevantes do processo e subsumindo aos elementos do tipo,
para aferição da existência ou não de um juízo de certeza dos conteúdos; ========================================
O arguido agiu de
forma livre e com a intenção de satisfazer os seus desejos sexuais, mesmo
sabendo que a ofendida contava apenas com 4 anos de idade, ainda assim a abusou
sexualmente; ==================
Subsunção
Jurídico-Penal ======================================
O arguido vem acusado
e pronunciado por incorrer, em autoria material e na forma continuada, na
prática de dois crimes de Violência Doméstica, sendo um de:
================================================
- Violência Sexual,
do tipo previsto nos art.ºs 2.º (corpo), 3.º, n.ºs 1 e 2, al. a), 25.º, n.º 1,
al. C), todos da Lei n.º 25/11, de 14 de Julho “Lei Contra Violência
Doméstica”, punível nos termos do art.º 394.º, do C. Penal de 1886, por força
do art.º 6.º e do n.º 2, do art.º25.º, ambos da lei em referência e do n.º 2,
do art.º 2.º, do C. Penal Angolano vigente; =========
Sucede que, com a
entrada em vigor do novo Código Penal, aprovado pela Lei n.º 38/20, de 11 de
Novembro, ficou revogado o Código Penal de 1886;
Em regra, aplica-se a
lei penal vigente ao tempo da prática do facto criminoso, nos termos do
princípio basilar, tempus regit actum. Quer isto significar que, a lei penal
produzirá efeitos, regime regra, no período da sua vigência e de acordo com a
lei vigente na véspera do facto. Contudo, há um desvio a esta regra: as leis
penais mais favoráveis aplicam-se sempre retroactivamente;
======================================
Porém, atentos a
aplicação das leis no tempo, vide o art.º 2.º, n.º 2, do C. Penal vigente e de
acordo com a prova vertida nos autos, afigura-se necessário subsumir o
comportamento do arguido na previsão legal da norma que tipifica o seu
comportamento como crime, quer à luz da lei antiga como à luz da lei nova, com
vista a aferir qual delas é concretamente mais favorável; ==================================================
Deste modo, diremos:
=========================================
No domínio da lei
antiga: o comportamento do arguido traduz-se no crime de Violação de menor de
12 anos, p. p. p. art.º 394.º, do Código de 1886, cuja moldura penal é a de
prisão maior de 8 a 12 anos; ===============
No domínio da lei
nova: o comportamento do arguido é qualificável como, crime de Abuso sexual de
menor de 14 anos, p. p. p. art.º 192.º, n.º 1, do C. Penal vigente, cuja
moldura penal é a de prisão de 1 a 5 anos. Visto que foi entendimento do
Tribunal que não houve penetração; ==============
Considerando o
enquadramento jurídico-penal da conduta praticada pelo arguido, entende o
Tribunal em aplicar a lei nova, considerando-a como a mais favorável, tendo em
conta, neste caso, a comparação das penas mínimas e máximas das duas
penalidades; ========================
III – O Dispositivo
=============================================
Portanto, o
comportamento do arguido, preenche o quadro legal para os tipos de crimes de:
============================================
- Abuso Sexual de
Menor de 14 anos, p. p. p. n.º 1, do art.º 192.º, do Cód. Penal Angolano, cuja
moldura penal é a de prisão de 1 a 5 anos, e; ======
- Outro, sob a forma
de Violência Psicológica, do tipo p. p. p. art.ºs 2.º (corpo), 3.º, n.ºs 1 e 2,
al. C), 25.º, n.º 1, al. A) e n.º 2, todos da Lei n.º 25/11, de 14 de Julho
“Lei Contra a Violência Doméstica, cuja moldura penal é a de prisão de 2 a 8
anos; ================================
Agravam a
responsabilidade criminal do arguido, as circunstâncias: - g) contra parente e
j) contra criança, ambos do art.º 71.º, n.º 1, do C. Penal;
Militam a favor do
arguido, as circunstâncias atenuantes: al. G), delinquência primária, do art.º
71.º, n.º 2, do C. Penal; ================
Pelo o exposto,
decide o juiz desta 2.ª secção criminal, dar como procedente, porque provada a
douta acusação formulada contra o arguido, e em nome do povo, em condena-lo nas
penas de: ====================
- 5 (cinco) anos de
prisão, no crime de Abuso sexual de Menores de 14 anos, e;
====================================================
- 8 (oito) anos de
prisão para o crime de Violência psicológica; ===========
- Feito o cúmulo
jurídico, vai o arguido condenado na pena única de 12 (doze) anos de prisão.
=========================================
-Taxa de justiça, em
Kz. 100.000,00”. =============================
Aqui chegados impõe-se
proceder à apreciação das concretas questões suscitadas pelo recorrente
arguido no seu recurso. ==
1- DO FACTO DE O RECORRENTE (ARGUIDO) TER SIDO PRESENTE
AO JUIZ DE GARANTIA, 72 HORAS DEPOIS. (DÁ
LUGAR À REVOGAÇÃO DA SENTENÇA RECORRIDA)? ==================================
Rezam os autos que o
arguido foi detido no dia 19 de Agosto de 2023, nesta cidade do Lubango, e
apenas foi presente ao Juiz de Garantia, isto na cidade de Moçâmedes, em razão
de competência territorial, 72 horas depois, concretamente, no dia 22 do
referido mês e ano, (Fls. 17v e 25 a 27v), o qual, tendo em atenção ao ilício
praticado pelo arguido, aplicou a medida de coacção pessoal, a prisão
preventiva. ==================
Vislumbra-se no Auto de
Primeiro Interrogatório de Arguido Detido (fls. 25 a 27) que, o recorrente
esteve sempre acompanhado do seu mandatário judicial, pessoa entendida sobre
questões de fórum penal, que, a nosso entender, ao verificar que o seu
constituinte se encontrava privado de sua liberdade, para além do prazo
estabelecido por lei, deveria, de antemão, requerer em acta o competente recurso
ordinário, para o Tribunal superior. Pois; =========================
Ao protelar, a
irregularidade agora arguida, deixou de ser efectiva e actual, uma vez que, “As
irregularidades só determinam a invalidade do acto a que se referem e a dos
actos subsequentes por elas afectados quando forem arguidas pelos interessados no
próprio acto, se a ele assistirem, ou, não estando presentes, no prazo de 5
dias a partir daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do
processo ou em que intervierem em acto nele praticado”. N.º 1, do artigo
144.º, do CPP. O sublinhado é nosso. =========================
Com base nisso, não há
lugar à revogação da sentença recorrida, na medida em que o princípio
informador da actualidade foi postergado pelo recorrente. ================
2- DA FALTA DE PRESTAÇÃO
ANTECIPADA DE DEPOIMENTOS OU DECLARAÇÕES (CONSTITUI NULIDADE INSANÁVEL?).
========================
O recorrente afirma que o
facto de a menor ofendida não ter sido ouvida pelo Juiz de Garantia, nos termos
da al. g) do artigo 140.º, conjugados com o n.º 2 do referido artigo e com a
alínea h) do artigo 313.º, ambos do C.P.P., constitui nulidade insanável e, em
consequência disso, deve ser anulado o julgamento.
========================================
Perguntar-se-á o seguinte:
a falta de prestação antecipada de depoimentos ou declarações constitui
nulidade insanável? Esta falta é requisito de nulidade de sentença, previsto no
artigo 426.º, do C.P.P.? a resposta a essas perguntas é não. Porque;
============================================
Compulsados os autos,
verifica-se a fls. 273 a 273v que a menor ofendida foi ouvida, em sede de
julgamento, onde estiveram presentes o Digno Magistrado do Ministério Público,
o Advogado Assistente, bem como o Advogado da defesa. Assim, esta diligência
veio sanar a nulidade arguida, porquanto refere o n.º 7, do artigo 317.º, do
C.P.P., que “A antecipação dos depoimentos ou declarações não prejudica a
prestação de novos depoimentos ou de novas declarações em audiência, sempre que
ela for possível e não for desaconselhada por motivos de saúde física ou
psíquica da testemunha ou declarante”. E ainda o n.º 8, do aludido artigo
diz que: “Os depoimentos ou declarações antecipadas, nos termos do presente
artigo, são tidos em consideração como elemento de prova na instrução
contraditória e no julgamento, mesmo que as pessoas que os prestaram não
estiverem presentes”. ========
Então, não tendo esta prova
sido colhida em fase de instrução preparatória, por quem tinha a legitimidade
para tal, considera-se ultrapassada a questão em virtude de ter sido produzida
em fase de julgamento, pois, se se colhesse na fase inicial, seria considerada
em fases seguintes, mesmo com a ausência do depoente, tal como enuncia o número
referido acima. Colhida que foi na fase posterior, deve, de igual modo, ser
considerada e colmatar a falta em fases anteriores, socorrendo-se ao princípio
de mutatis mutandi. ============
3- SE O TRIBUNAL “A QUO”
CONDENOU O RECORRENTE NOS FACTOS DIFERENTES DAQUELES QUE CONSTAM NA ACUSAÇÃO E
NO DESPACHO DE PRONÚNCIA. ====
Lida a acusação constante a
fls. 88 a 93, verifica-se que a Digna Magistrada do Ministério Público, junto
daquele Tribunal, acusou o arguido em autoria material e na forma consumada, na
prática de dois crimes de Violência Doméstica, porquanto, tal como descreveu no
seu libelo, “(...) Em data imprecisa do pretérito ano de dois mil e dezanove, o
arguido foi passar as férias na residência do seu primo FFFFF, localizada nesta
cidade de Moçâmedes, mais concretamente no bairro da Juventude, na localidade
do Saco-Mar, na companhia de um irmão seu não identificado nos autos, onde
aquele coabitava com a sua esposa RRRRR ... que se encontrava em estado de
gestação e os seus dois filhos menores, incluindo a ofendida; ========
... Durante o tempo em que o arguido ficou na
residência do declarante FFFFFF foi-lhe também incumbida a responsabilidade de
apoiar os filhos do declarante tirando-os de casa para a escola e
vice-versa...; ==========
... À data dos factos a ofendida contava apenas com 4
(quatro) anos de idade e sucede que quando os pais desta se ausentava de casa
para o serviço e o irmão desta para o colégio, o arguido aproveitava para a
abusar sexualmente; ================================================
Nessas ocasiões, o arguido convidava a menor para ir
até ao seu quarto (escritório), onde a mandava despir-se e depois deitar-se de
barriga para baixo na sua cama; ===========================================
Acto contínuo o arguido subia por cima da menor,
introduzia o seu membro viril erecto na cavidade vaginal desta e mantinha
cópula ilícita com a mesma, ejaculando no interior da cavidade vaginal
feminina... =========
O Meritíssimo Juiz de
Garantia, ao proferir o despacho de pronúncia, fê-lo nos mesmos termos, ou
seja, alinhou no mesmo diapasão em que andou o Ministério Público, vide
despacho de pronúncia de fls. 145 a 153. =================
O recorrente afirma que o
Tribunal “a quo” o condenou nos factos diferentes dos constantes na
acusação e no despacho de pronúncia, no entanto, verificada a sentença em
crise, denota-se que o Tribunal condenou nos factos constantes nos autos,
valorados em sede de julgamento, tendo afastado apenas a questão da introdução
do membro viril do arguido na cavidade vaginal da menor, questão esta, aliás,
que foi respondida, nos quesitos, como não provada. ===========================
E, é esta questão que no
nosso entender está a apoquentar o recorrente, que o leva a deduzir que o
Tribunal o condenou nos factos díspares daqueles constantes na acusação e no
despacho de pronúncia, chegando mesmo a enunciar, nas suas conclusões que, “não é possível haver
violação sem penetração”. (Vide al. i) das conclusões a fls. 334). =====================
Esta afirmação do
recorrente é incongruente, pois, prescreve o artigo 3.º, n.º 2, al. a), da Lei
n.º 25/11, de 14 de Julho, Lei Contra a Violência Doméstica, que, “Violência sexual – qualquer conduta que obrigue a
presenciar, a manter ou a participar de relação sexual por meio de violência,
coacção, ameaça ou colocação da pessoa em situação de inconsciência ou da
impossibilidade de resistir.” Assim, tendo em atenção a esta
definição e analisando os verbos e as conjunções disjuntivas aí contidos,
facilmente se percebe que sim, é possível haver violação (sexual) sem
penetração. Em face disso, =============================================
É nosso entendimento que o
Tribunal “a quo” não condenou o arguido nos factos diferentes daqueles
que constam na acusação e no despacho de pronúncia. ===================
Cabe
agora conhecer a questão levantada pelo Digno Magistrado do Ministério Público,
da forma que se segue. ====
4. DA
POSSIBILIDADE DE A PRESENTE INSTÂNCIA CONDENAR O ARGUIDO NO DEVER DE INDEMNIZAR
A OFENDIDA ====================================
Embora
os Tribunais da Relação tenham, do ponto de vista do poder de cognição, a
competência para conhecer, tanto da matéria de facto, quanto a de direito,
conforme estabelece o n.º 2 do artigo 44.º, da Lei n.º 29/22, de 29 de Agosto,
Lei Sobre a Organização e Funcionamento dos Tribunais Comuns e artigo 496.º,
n.º 1 do CPP., a verdade é que, a defesa, no seu recurso, especificou questões
a serem apreciadas e decididas, e que, limitam, desta forma, o seu âmbito,
apesar da lei processual penal consagrar, no n.º 1 do artigo 464.º, a
possibilidade de o recurso se estender a todo conteúdo, quando hajam questões
de conhecimento oficioso, como é o caso do dever de indemnização do arguido à
ofendida, pelos danos, não só imateriais, concretamente psicológicos, mas
também físicos e patrimoniais, sendo que ficou provado que, algum tempo depois
de o arguido ter mantido cópula ilícita com a vítima, a mesma passou a sentir
dor na bexiga e na região vaginal e padeceu de uma infecção no trato genital,
caracterizado por corrimentos com sangue, que obrigou os seus progenitores a
levá-la a uma das Clínica da Província do Namibe, onde se efectuou consulta
(vide fls. 05 dos autos) médica. Submetida à Exame Médico-legal, concluiu-se a
presença de bactéria Diplococos do Gram negativo encontrados no resultado de
exame do exudado vaginal da examinada, compatível com a doença de transmissão
sexual (gonorreia)” (vide Auto de Exame Directo Médico-Legal de Natureza Sexual
a fls. 54 e 55); deste facto se pode presumir que a vítima efectuou tratamento
médico que necessitou dos seus pais, dispender recursos financeiros para o
efeito. Aliás, vale lembrar que fala-se de uma Clínica, e, como é consabido,
são bastante onerosas na prestação dos seus serviços.
===========================
Todavia,
à respeito da reparação destes danos todos pelo arguido, da douta sentença do
Tribunal “a quo”, nada consta,
quando, agindo, assim, ao arrepio do artigo 30.º, n.ºs 1, 2 e 3, da Lei
n.º 25/11, de 14 de Julho, Lei Contra a Violência Doméstica. Pois, tal como
afirma o STJ no acórdão
datado de 08-06-1999: “VIII - A compensação por danos não patrimoniais, para responder
actualizadamente ao comando do artigo 496.º do C. Civil e constituir uma
efectiva possibilidade compensatória, tem de ser significativa, viabilizando um
lenitivo para os danos suportados e, porventura, a suportar, pelo que não pode
ser miserabilista.” =========
E seguindo a mesma linha, o acórdão do Tribunal da Relação de
Guimarães de 13-01-2020 aponta que: “Em Tempos de usura dos valores primaciais da Pessoa Humana, como
sejam a vida, a integridade física, a saúde, a liberdade, a autodeterminação
sexual – que ficam espelhados na violência de género e no seio da família mas,
ainda, em meio escolar, no desporto e no ciberespaço – importa que os Tribunais
façam uma leitura afinada das necessidades de prevenção, naturalmente sem nunca
desconsiderar a culpa (criminal e cível) e a reintegração do arguido, porque à
Justiça compete restaurar os bens ofendidos e sinalizar as condutas que
flagelam o bem-estar singular e comum.” =============
Das
provas constantes nos autos, denota-se que o recorrente é autor material dos
crimes de Abuso Sexual de Menor de 14 anos, p. p. p. n.º 1, do art.º 192.º, do
Código Penal Angolano, e Outro, sob a forma de Violência Psicológica, do tipo
p. p. p. art.ºs 2.º (corpo), 3.º, n.ºs 1 e 2, al. C), 25.º, n.º 1, al. a) e n.º
2, todos da Lei n.º 25/11, de 14 de Julho, Lei Contra a Violência Doméstica;
tendo sido vítima a menor XXXX, que, à data
dos factos, contava com 4 (quatro) anos de idade. =======
Consta
ainda que, o abuso sexual sofrido pela menor foi sucessivo, isto é, por 4
(quatro) vezes, tendo causado sequelas de fórum psicológico à ofendida. O
comportamento do arguido, indubitavelmente, flagelou o bem-estar moral, físico
e psicológico da vítima, pelo que, o Tribunal recorrido ao não arbitrar o valor
compensatório, de todo, desconsiderou quer a culpa do agente, quer o sofrimento
que a menor passou, pese embora, a indemnização não expungiria o flagelo,
entendemos que, de certa forma, repararia os danos e a sua arbitração, nesta
Instância, corrigiria o lapso cometido pelo Tribunal “a quo” e cumpriria o emanado no artigo 30.º, da Lei n.º 25/11, de
14 de Julho, Lei Contra a Violência Doméstica, ou seja, esta instância agiria
em obediência ao princípio da legalidade, pois tal como ficou claro acima e do
que se pode expurgar da interpretação desse diploma legal, é de lei que, o
juiz, ao apreciar e decidir tais casos, quando julgar procedente porque provada
a douta acusação, não deve limitar-se a condenar o arguido na responsabilização
penal. Deve, igualmente, condená-lo no dever de indemnizar a ofendida, de
formas a amenizar, já que a reparação como tal não é possível, os danos
psicológicos sofridos, que não devem ser ignorados, nunca. ==
Segundo
Gorete Vasconcelos, Psicóloga
Brasileira, especializada em Psicologia
clínica e atendimento a vítimas de violência doméstica, “embora não exista um
padrão uniforme no processamento de uma violência, pois cada pessoa vai
ressignificar e processar as consequências da violência de forma singular, o
certo é que, toda e qualquer violência deixa marcas no psiquismo, que
geralmente comprometem o desenvolvimento da criança e do adolescente e a sua
subjetividade. ===============================================
Ansiedade,
depressão, síndrome do pânico, comportamentos autodestrutivos ou sexualização
precoce,
são alguns dos transtornos que podem surgir em adolescentes vítimas de abuso. O
transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), por exemplo, que causa sofrimento
intenso e afecta várias áreas da rotina, como relacionamentos e trabalho, é
desenvolvido por cerca de 57% dessas vítimas”. =====================
A psicóloga
acrescenta: “A criança sente o corpo profanado, invadido, e pode apresentar
diversos sintomas, tais como: angústia de que algo se quebrou dentro do seu
corpo, sentimento de culpa, perturbações do sono, dores abdominais, enurese
(perda do controle da bexiga durante o sono), encoprese (um tipo de
incontinência fecal), distúrbios alimentares, entre outros. Os pré-púberes
apresentam sequelas que dificultam sua evolução psicoafectiva e sexual, afectando
as identificações que ela poderia construir, impedindo que a adolescência seja
um período de questionamento construtivo. ====================================
A dissociação,
caracterizada por um afastamento súbito da realidade e pela falta de
compreensão sobre o que é ou não real, também é comum em casos de abusos
frequentes com crianças. Essa lacuna de percepção pode causar problemas
emocionais e de socialização no futuro”. (www.childhood.org.br) =======================================
São
apenas alguns exemplos referentes aos danos morais por abuso sexual que nunca
deveriam ter passado despercebidos ao ser decidido o caso, a ponto de o juiz
deixar de condenar o arguido no dever de indemnização ou compensação, arbitrando,
para o efeito, a devida quantia monetária. =======
No
entanto, em observância ao princípio de “reformatio
in pejus”, previsto no artigo 273.º, do C.P.P., não será possível, nesta
Instância, condenar o arguido na indemnização pelos danos causados à ofendida,
pois, a suceder, feriria o referido princípio, uma vez que o recurso foi
interposto no exclusivo interesse do arguido e que a sua expectativa é uma
possível redução da pena, ou a revogação da decisão e nunca ver a sua situação
agravada, com pagamento de uma indemnização que nunca lhe foi frisado na
primeira Instância. ===============
Pelo exposto, não assiste
razão ao recorrente e, neste entretanto, dar-se-á por não provido o recurso,
com todas as consequências decorrentes do decaimento. ===============
IV.
DECISÃO
===================================
Nesta
conformidade, acordam em conferência, os juízes desta Câmara Criminal, em nome
do povo, em não dar provimento ao recurso interposto pelo recorrente AAAAAA,
com demais sinais de identificação nos autos e, em consequência confirmar a
decisão recorrida. ==================================
Vai
o recorrente condenado no pagamento da taxa devida, nos termos do n.º 3 do
artigo 487.º do C.P. Penal. ==============
Registe
e notifique. ===================================
Cumpra-se
o mais da lei. ==============================
Lubango,
06 de Fevereiro de 2025. ======================
ARMANDO
DO AMARAL GOURGEL
ADÃO
CHIOVO
LÚCIA SANTIAGO